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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

OS BRICS E A GLOBALIZAÇÃO - PERSPECTIVAS DA RÚSSIA E DA CHINA


O conceito de BRICS, como se sabe, é recente. Não traduz uma realidade simples, mas uma relação complexa entre várias unidades nacionais que não possuem uma política comum, mas que têm alguns pontos que as aproximam, outros que as distanciam, no complexo cenário do mundo globalizado. Daí a importância de se partir para uma abordagem dessa temática à luz da metodologia dos estudos monográficos, sugerida por dois ícones da sociologia brasileira: Sílvio Romero e Oliveira Vianna (formuladores da tendência conhecida como “culturalismo sociológico”). Somente nos aproximando, dessa forma, da genérica realidade abarcada pelo nome de BRICS, conseguiremos iluminar a questão e ir entendendo os aspectos mais relevantes.
    
       De outro lado, Marcos Azambuja [2009: 31] deixou claro que seria uma redução simplista atribuir o surgimento da temática dos BRICS a um alto executivo da Goldman Sachs, quando é de domínio público que o conceito da importância crescente dos “quatro grandes emergentes” (Brasil, Rússia, Índia e China) já tinha trânsito no seio da Organização para Cooperação e Desenvolvimento (OCDE), bem como em foros internacionais.
    
       A fim de esclarecer a temática dos BRICS, adotando a metodologia monográfica apontada, analisarei, neste trabalho, as perspectivas que se descortinam, no mundo globalizado, para dois integrantes desse grupo: a Rússia e a China, levando em consideração, de outro lado, como objeto formal da minha pesquisa, a perspectiva do “Estado Patrimonial”, encontradiço, aliás, em todos os integrantes do grupo. Em estudo ulterior desenvolverei a mesma indagação em relação aos dois outros membros dos BRICS, o Brasil e a Índia.
    
       RÚSSIA.
   
       O bárbaro assassinato, em Moscou, em outubro de 2006, da jornalista Ana Politkovskaya, deixou claro que a liberdade de imprensa, na Rússia, está seriamente ameaçada pelo Estado autoritário [cf. Politkovskaya, 2007]. O processo de democratização do país sofre com a estrutura do poder ferreamente controlada pela burocracia, centralizada ao redor dos organismos de segurança, cujo chefe continua sendo o ex-presidente (e agora primeiro ministro) Vladimir Putin. Trata-se de um contexto político que é, sem dúvida, patrimonialista. A Rússia, aliás, tinha sido considerada por Max Weber e Karl Wittfogel, no século passado, como paradigma desse tipo de dominação, cuja nota característica consiste em que o poder é exercido, pela elite dominante, como se fosse a sua propriedade familiar [Cf. Weber, 1977: II, 810-847; Wittfogel, 1977: 174].
    
       Para os países latino-americanos que se debatem atualmente entre várias modalidades de populismo patrimonialista (de cunho totalitário em Cuba e, possivelmente, na Venezuela, de feição telúrica na Bolívia e no Equador, de modalidade estamental-operária na Argentina, de tipo messiânico-sindical no Brasil, de feição familístico-exportadora no Paraguai, de clientelismo armado na Colômbia, etc.) é de grande valor estudar o processo de evolução do patrimonialismo num país como a Rússia. As nossas realidades, em que pese as diferenças históricas, assemelham-se em não poucos pontos, do ângulo do poder que exercem as respectivas burocracias em ambos os contextos, no seio de uma cultura altamente privatizante do espaço público por clãs e patotas.
    
       De forma semelhante a como Hitler destroçou a intelectualidade alemã, a fim de erguer à liderança do país as mediocridades de que se compunha a elite do Partido Nacional Socialista alemão, Lênin e Stalin fizeram outro tanto na Rússia: eliminaram simplesmente todos aqueles que fossem capazes de pensar ou elaborar uma visão da União Soviética e do mundo, diferente da que eles professavam [cf. Volkogonov, 2008: 1-163]. A mentalidade que se estabeleceu no poder era essencialmente unilinear, o que fez com que ficasse comprometido o processo de consolidação da Rússia como nação moderna. Isso se viu agravado com a perpetuação, sob Stalin, das erráticas políticas agrícolas de Lenine, que levaram, pura e simplesmente, como lembra Antônio Paim, ao desaparecimento dos empresários rurais. O próprio líder da revolução bolchevique tinha, aliás, uma visão bastante ingênua do que era a economia industrial, imaginando que esta se reduziria a simples controle cartorial, pelo Estado, sem maior preocupação com as questões técnicas [Paim, 2009: 106, 124]. Em 1937, depois de Stalin ter eliminado os velhos bolcheviques que lhe faziam oposição, somente 17,7% dos secretários regionais do Partido Comunista e 12,1% dos chefes urbanos do mesmo tinham educação superior, enquanto que 70,4% (dos chefes regionais) e 80,3% (dos chefes urbanos) somente tinham recebido educação primária. Ou seja: o velho ditador nivelou o país por baixo, de forma a não ser incomodado [cf. Poch-de-Feliu, 2003: 6 seg.].
    
       Quadro bastante fiel desse processo de morte da inteligência foi traçado por Piotr Schelest, primeiro-secretário do Partido Comunista ucraniano entre 1963 e 1972, com as seguintes palavras: “Quase cada dia, ou melhor, cada noite, havia detenções de trabalhadores na fábrica. Muitos trabalhadores qualificados, engenheiros, até o chefe do corpo de bombeiros, eram detidos. Mais de oitenta pessoas. Alguns regressaram à fábrica, mas guardavam um silêncio total sobre o que lhes aconteceu, ou acerca dos motivos da sua detenção. De muitos detidos não voltamos a ter mais notícias. Desapareceram. As acusações como inimigos do povo ou oportunistas apareciam constantemente na imprensa, na rádio e nos discursos dos ativistas do partido. Todos desconfiavam de todos; o pai do filho, o filho do pai. As denúncias contaminavam tudo e todos. Foi um tempo muito duro e nós sobrevivemos por casualidade” [Poch-de-Feliu, 2003: 6-7].
    
       Desaparecido Stalin, o centro do sistema foi sendo ocupado por burocratas pertencentes à antiga nomenklatura, formados na mentalidade de enriquecer a partir do Estado, passando rasteira em todos quantos se opusessem às suas tacanhas ambições. Era como se tivesse sido organizada uma grande Igreja com bispos “orçamentívoros”. Poch-de-Feliu escreve a respeito: “De forma parecida aos ministros da Igreja, os nomenklaturistas eram administradores coletivos de grandes riquezas de propriedade estatal, que a ideologia apresentava como patrimônio social. O convívio com elas fazia-os parecer bispos zelosos do patrimônio que o administravam, sem ser donos dele. Depois de 1964, na URSS institucionalizou-se a época do aparelho, do alto funcionário nomenklaturista como dono coletivo do país. É claro que a existência do aparelho vinha de antes. O fato novo era a sua emancipação política. Com Stalin, o aparelho tinha sido a mão direita do temido caudilho. Eliminados os perigos de morte nas suas relações internas, com Kruzhev o aparelho tinha se emancipado e, a partir de então, os secretários gerais passaram a ser delegados e primus inter pares de um aparelho institucionalizado como dono coletivo do país” [Poch-de-Feliu, 2003: 9]. A nomenklatura soviética passou, portanto, a administrar o público como propriedade privada, preservando, assim, a característica básica da cultura patrimonialista.
    
       No seio dessa cultura de enriquecimento privado às custas dos bens públicos, os nomenklaturistas passaram a se considerar superiores à lei. Os estatutos legais valiam para os outros, não para eles. Podiam praticar, sem risco, qualquer tipo de desvio de dinheiros públicos. Ninguém, na cúpula, via nada nem sabia de nada. O pacto era para que cada aparelho se enriquecesse, sugando a parcela de riqueza nacional por ele administrada. Nesse cinismo em que o público confundiu-se com o privado, os interesses pessoais e familísticos passaram a valer mais do que a preocupação com o bem do país. A respeito, escreve Poch-de-Feliu: “Entre os nomenklaturistas não havia respeito pela lei. Sabiam, por própria experiência, que as leis soviéticas eram freqüentemente simples carcaças, instrumentos do capricho ou da necessidade do poder, aplicáveis aos simples mortais, mas não a eles. Embora houvesse muitas atitudes enérgicas ao longo do país, o clima, sobretudo no topo da pirâmide, levava a colocar os interesses pessoais e de grupo, especialmente a possibilidade de utilizar qualquer situação favorável para a ascensão, à frente dos interesses gerais do país. Nesse clima, as boas intenções logo se esgotavam” [Poch-de-Feliu, 2003: 10-11].
    
       Mas, se a burocracia do sistema russo estava bastante contaminada pela corrupção, a ineficiência e as tendências patrimonialistas, no entanto, é bom recordar, ao mesmo tempo, que a sociedade russa é tremendamente rica em inteligência, em capacidade de trabalho e em cultura. Por força dessa riqueza social, não tudo foi negro na administração soviética. Os russos conseguiram erguer uma poderosa máquina de guerra e colocaram a seu serviço uma indústria pesada bem desenvolvida. Cientistas de primeira linha se formaram ao ensejo dos planos qüinqüenais. De outro lado, o patriotismo russo sempre esteve presente na alma do povo, o que teve como resultado uma sociedade tremendamente combativa, que deu provas de grande heroísmo ao rejeitar com denodo as invasões de que foi vítima desde os primórdios da sua história. A derrota de Napoleão, no início do século XIX, bem como a resistência dos russos às potências do Eixo, na Segunda Guerra mundial, são provas desse valor.
    
       Esse foi o pano de fundo em que se desenhou a glasnost de Gorbatchev. Representante da geração nova de tecnocratas cansados com a pachorrenta burocracia, este estadista decidiu pôr em marcha um movimento de contestação das antigas estruturas, partindo de dentro do próprio sistema, numa espécie de “autoritarismo instrumental” que lembra a frase do general Figueiredo: “Juro fazer deste país uma democracia e prendo e arrebento que se opuser”.

       A estratégia de Gorbatchev consistiu, basicamente, no seguinte: ir substituindo, de maneira rápida, os antigos dirigentes do Partido, por lideranças mais afinadas com os anseios da sociedade civil, de um lado, e com as exigências da elite tecnocrático-militar, de outro. A União Soviética caiu de podre, mas a Rússia não foi deitada por terra definitivamente, em virtude dessa ação planejada por Gorbatchev. Não havia como sustentar por mais tempo a velha árvore carcomida pelos ávidos cupins da burocracia, instalada no interior dos aparelhos [cf. Volkogonov, 2008: 386 seg.].

       A respeito da forma tipicamente patrimonialista em que a burocracia do Partido Comunista dominava o país como se fosse a sua posse, escreve Poch-de-Feliu: “Em mãos da nomenklatura concentravam-se a autoridade, a produção, a administração, a distribuição, a criação e a interpretação da ideologia. A sua coluna vertebral era o Partido de Estado, uma instituição que não tinha nada a ver com os partidos políticos de um sistema plural. O Partido, não os seus membros, que eram nominalmente 20 milhões, mas os seus funcionários, era a parte decisiva do Estado. O Partido apresentava-se como genuíno representante da sociedade civil, mas, na realidade, a sua presença impedia a separação de poderes e o estado de direito, ou seja, privava à sociedade civil do oxigênio necessário para a sua existência”.
    
       Economicamente, o Estado-Partido usurpava as funções do mercado: determinava as necessidades, fixava os preços e distribuía os recursos. Os postulados da ideologia oficial castravam ou retardavam o pensamento livre e a espontaneidade, e criavam, além do mais, uma atmosfera social fechada e pesada”[Poch-de-Feliu, 2003: 11].

       A tarefa de que se desincumbiu Gorbatchev e a sua equipe não foi fácil. Destaquemos, em primeiro lugar, que ele encarnou, de maneira decidida, como, aliás, já o tinham feito os seus antecessores comunistas, a tradição monárquica herdada do czarismo (um outro traço patrimonialista). Centralização total do poder nas suas mãos. Somente assim pode ser entendido o complexo processo de engenharia política que deu ensejo à Glasnost e à Perestroika. Gorbatchev devia administrar quatro segmentos diferentes: os anti-estalinistas, os partidários do “socialismo com rosto humano”, os tecnocratas vinculados às Forças Armadas e a pesada burocracia do sistema, popularmente chamada de O Lamaçal.
    
       O que ocorreu na Rússia, entre o final da década de oitenta do século passado e o final da primeira década deste século, foi muito rápido e corresponde a esses fenômenos de “aceleração da história”, em momentos pico que acontecem raras vezes. O processo pode ser sintetizado assim: Gorbatchev conseguiu controlar O Lamaçal, mudando rapidamente toda a cúpula do Partido Comunista, por elementos afinados com o interesse que ele perseguia, de tornar o sistema favorável à aceleração das forças produtivas, criando um mínimo de racionalidade e conferindo espaço à livre iniciativa. O movimento começou com uma audaciosa abertura no terreno cultural e da livre expressão. Imprensa e intelectuais registraram, com surpresa, a velocidade com que o discurso mudou, em questão de meses, nas mesmas pessoas, indo da defesa incondicional da pachorrenta burocracia e do controle de tudo pelo Partido, até a audaciosa defesa dos novos objetivos da produção, do mercado e da abertura, incluídos aí os direitos humanos. Tudo isso, é bem verdade, embalado na retórica ortodoxa: as medidas reformistas implementadas a partir do Executivo eram novas exigências da antiga revolução leninista, que, infelizmente, foi desviada do seu curso por um bando de bastardos e corruptos. A rápida ascensão de Yeltsin, ambicioso e conflitivo dirigente provincial do Partido, explica-se desta forma: agilmente intuiu qual era a ordem do dia formulada pelo Secretário-Geral do PC, adaptou-se a ela e ascendeu à máxima liderança do sistema, na cidade de Moscou [cf. Gorbachev, 1988. Volkogonov, 2008: 411-423; Poch-de-Feliu, 2003: 20-55].
    
       O embate entre Gorbatchev e Yeltsin foi a luta entre dois estilos de czarismo: o encarnado por Gorbatchev, um estrangeirado proveniente de família estruturada de classe média rural, refinado, casado com uma intelectual, profundo conhecedor das leis pela sua formação de advogado na Universidade de Moscou, a escola que formava a elite do país, aberto ao diálogo com as sociedades ocidentais; e o estilo materializado em Yeltsin, um campônio rude, filho de pai violento que o surrava desde a infância, formado em engenharia numa universidade de província, aventureiro que perdeu dois dedos da mão esquerda ao desmontar, ainda rapazola, uma granada que roubou do quartel do Exército Vermelho na sua cidade natal, beberrão, surfista ferroviário, briguento, casado com uma dona de casa que nada tinha de intelectual. Yeltsin, como todo mundo sabe, ganhou a parada. Ele se afinava melhor com o cidadão russo médio, que terminou valorizando mais o seu populismo do que a sofisticação de Gorbatchev [cf. Brown – Shevtsova, 2004].
    
       As últimas etapas da evolução russa estão marcadas pela guerra contra os separatistas chechenos. A luta contra o fundamentalismo, os atentados de que têm sido vítimas cidadãos russos em Moscou e em outras cidades, a tremenda capacidade de luta desse povo da região montanhosa do Cáucaso, terminaram com que a balança do poder pendesse para o aparelho de segurança chefiado por Vladimir Putin. Este, frio como gelo, bem como o seu sucessor e íntimo colaborador, Medvedev, caracterizam-se pelo seu pragmatismo grão-russo, que faz com que desenvolvam uma complexa política de manutenção dos pactos comerciais com o Ocidente, ao mesmo tempo em que apertam o parafuso da segurança interna e azeitam de novo a máquina de guerra, tudo financiado com os fartos dólares da exploração do gás natural e do petróleo do Mar Cáspio e da Sibéria.

       Quais as alternativas que, no sentir dos estudiosos, restam para a Rússia, na atual quadra do seu desenvolvimento histórico? Mencionemo-las:
    
       1 - A Rússia, após Gorbatchev, entrou no mundo e o mundo entrou nela. É pouco provável um retrocesso que a segregue do convívio com o Ocidente. É pouco provável, também, que os novos czares assinem embaixo de um manifesto contra a globalização. As forças de segurança que hoje controlam o poder na Rússia deverão estabelecer limites ao terror de Estado exercido em contra dos dissidentes, como os chechenos, por exemplo, a fim de não aumentar as arestas com os países ocidentais [cf. Karol – Nivat, 2002: 32-37]. Até quando a dupla Putin-Mevdvedev conseguirá manter, de um lado, as aparências de legitimidade constitucional do sistema e, de outro, exercer o controle sobre a cúpula do aparelho de segurança do país, a FSB, que é a real detentora do poder? Pergunta que fica na incerteza. A respeito, escrevem Yuri Felshtinsky e Vladimir Pribilovski, na parte final da obra intitulada A era dos assassinos – A nova KGB e o fenômeno Vladimir Putin: “Assim como nossos leitores, tudo o que podemos fazer é aguardar e observar com muita atenção o desenvolvimento dos acontecimentos na eternamente imprevisível Rússia” [Felshtinsky – Pribilovski, 2008: 379].
    
       2 - Os russos podem trilhar o seu próprio caminho e apresentá-lo ao mundo, enveredando por uma globalização “com rosto humano”, diante da globalização chefiada pelos americanos e pelo seu estilo de capitalismo financeiro agressivo. Claro que, ao fazê-lo, estarão ressuscitando velhos sonhos patrimonialistas, ao insistir, em face da atual crise financeira internacional, num “capitalismo de Estado” como forma de evitar a crise do cassino global. Ora, esse tal capitalismo não seria outra coisa senão o velho sistema econômico patrimonialista, que consiste em montar empresas de fachada, financiadas com os generosos recursos oficiais, a fim de distribuir dividendos, como se diz hoje no Brasil, “entre os amigos do rei”, no caso russo, do czar de plantão e os seus amigos. É o que parece estar acontecendo, de fato, na Rússia atual, com o controle crescente da burocracia política, chefiada pelos organismos de segurança, sobre o sistema produtivo, notadamente as empresas ligadas ao gás natural e ao petróleo (fala-se, hoje, em Moscou, em termos ufanistas, da Rússia como “Superpotência energética”). A propósito, frisa Roberto Colin: “O objetivo de Putin é fazer da Rússia um ator independente na arena internacional, mediante o fortalecimento do Estado (...). A ênfase de Putin na força e na unidade tem por objetivo contrabalançar a sensação de insegurança (um traço psicológico com raízes profundas na história russa) ocasionada pelo colapso financeiro de 1998, pela expansão da OTAN, pelo terrorismo dentro da Rússia e pelo unilateralismo norte-americano” [Colin, 2007: 1122].
    
       3 - À sombra da política energética agressiva que está em desenvolvimento, a Rússia costurará, no decorrer das próximas décadas, nexos mais estreitos com a União Européia. Nos dois últimos invernos, os russos já deixaram claro aos seus vizinhos ucranianos e aos europeus ocidentais em geral, que são eles os que controlam as chaves do gás natural que abastece a todos e que serão duros na negociação do precioso combustível. Esse jogo se traduzirá em melhores condições de venda do gás natural, que logicamente beneficiarão aos dirigentes russos. A respeito, frisa Roberto Colin: “A interdependência energética deverá garantir uma relação estável entre as partes no médio e no longo prazo. O aumento da importância do petróleo e do gás como elementos de poder nacional, além de outras questões, acelerou a evolução da autopercepção e da autoconfiança da Rússia como importante ator internacional. A arena mais relevante para a realização dessa percepção tem sido a Europa” [Colin, 2007: 122].
    
       4 - No terreno das relações internacionais, a Rússia deve ter um cuidado especial com a identificação do seu inimigo principal, (seguindo a trajetória da cultura milenar do povo russo que visou, sempre, a identificar o desafeto da vez, em todas as épocas). Isso com a finalidade de não trombar de frente com inimigos mais poderosos (especialmente a China, a Comunidade Européia, os Estados Unidos e o Japão), que sejam capazes de cortar os investimentos necessários ao desenvolvimento econômico. Trata-se de uma consideração bem pragmática, num mundo em que o que prevalece, talvez, seja um tipo de epicurismo nas relações internacionais.
    
       5 – Nesse conjunto de potências mundiais, certamente se destaca a China, como aquela com a qual a Rússia deverá desenvolver uma política mais prudente no decorrer dos próximos decênios. Não se trataria, evidentemente, de voltar às hostilidades que marcaram as relações com a China no período da Guerra Fria. A atitude da Rússia, em face dessa variável é, hoje, muito mais pragmática, diante de um competidor mais populoso e que ostenta índices de crescimento econômico muito por cima do resto do mundo. A atitude russa oscilará, segundo os estudiosos, entre buscar conter os avanços comerciais da China mediante alianças com as potências Ocidentais e procurar uma relação de parceria com o gigante chinês. Nesse contexto de freios e contra-freios, o papel da Índia como potência emergente é importante para a Rússia, pois se apresenta como significativo comprador de armas russas. Ora, esse comércio possibilitará aos indianos continuar com a tarefa de organizar um dos maiores e mais avançados exércitos do mundo, sem aumentarem a sua dependência do Ocidente, notadamente dos Estados Unidos [cf. Colin 2007: 124]. No caso da América Latina, os russos continuarão a espalhar o comércio de armamentos, como já o fazem há várias décadas. O principal comprador, nestes últimos anos é, certamente, o presidente Chávez, da Venezuela, que obteve dos dirigentes do Kremlin a autorização para instalar uma fábrica de rifles de assalto kalashnikov, que certamente trará muitas dores de cabeça, no futuro, aos vizinhos do regime de Caracas.
    
       CHINA.
    
       Nas últimas décadas do século passado houve uma descoberta importante: A China existe! O mundo assistiu, perplexo, após o ciclo maoísta, à entrada em cena desse gigante do Oriente, que pretendia, nada mais, nada menos, do que ocupar um lugar ao sol entre as potências mundiais, não apenas ostentando a sua máquina de guerra, como fizeram os soviéticos, mas se convertendo, de fato, em grande nação capitalista! Essa novidade foi assim traduzida por Gang Yang, no seu ensaio intitulado As três grandes tradições da nova era: “A simples existência da China cria um problema para os registros ocidentais sobre a história mundial. A Bíblia não dizia nada sobre a China. Hegel via a história mundial como tendo começado na China e terminado em uma crescente perfeição com a civilização alemã. A tese do fim da história com Fukuyama simplesmente substitui a Alemanha pelos Estados Unidos. Mas, de repente, o Ocidente descobriu que no Oriente existe essa tal de China: um grande império, com uma longa história e um passado glorioso. Um completo novo mundo acaba de surgir” [apud Leonard, 2008: 17].
    
       Foi impressionante o belo espetáculo com que os chineses abriram as Olimpíadas de Pequim no verão de 2008. Nessa mega encenação da mitologia chinesa formadora da identidade nacional, não foi feita nenhuma menção a Mão. Era como se os sessenta e tantos anos de comunismo não tivessem existido. O que foi ressaltado no evento, para que todo mundo guardasse na memória, era a mensagem de que a China possui uma identidade própria muito anterior às ideologias ocidentais (e o comunismo é, indiscutivelmente, uma delas). A grandiosidade do movimento matematicamente ritmado de centos de figurantes, as assombrosas mutações de sombras e de luz, os conhecidos dragões em alegres circunvoluções, o barulho ensurdecedor de centenas de tambores, tudo tinha uma mensagem que apelava para um passado mais remoto. Os chineses queriam mostrar ao Planeta que foram formatados em moldes diferentes, que se confundem com as brumas dos tempos da sua história de milênios. O Confucionismo era, certamente, uma das idéias-chave dessa apresentação. O Confucionismo que valoriza a riqueza pelo trabalho, o comércio, a disciplina rigorosa. Essa era a cara da nova China que se apresentava ao mundo no milênio que começa!

       Por esse motivo, não poderia deixar de iniciar a minha exposição sobre a presença da China no contexto dos BRICS, sem fazer referência ao pano de fundo da milenar história desse povo. O Império Chinês é, certamente, um dos mais antigos e poderosos que conheceu a Humanidade ao longo da sua história. Quatro mil e quinhentos anos, aproximadamente, é a idade da sua saga. Mal poderíamos entender o que se passa hoje na China, sem apreendermos essa rica história, na qual um dos elementos prevalecentes é o cultivo diuturno das ciências a serviço da organização do Estado e da Sociedade.
    
       A longa história da China pode-se identificar percorrendo as etapas das doze principais dinastias [cf. Ronan, 1987: II, 12-17], que foram aparecendo com o correr dos séculos, dando identidade a esse imenso país. Elas são as seguintes:
    
       1 – Dinastia Yang-Chao (2500 a C). Contemporânea da cultura do Indo e do Antigo Império Egípcio. Apareceu um milênio após a construção da cidade de Ur, na Suméria. Esta dinastia dominava sobre milhares de aldeias espalhadas numa longa faixa às margens do Rio Amarelo, de Kansu e Shensi até Shansi, Honan e Xantung. Características deste período foram produtos têxteis, cerâmica pintada e agricultura primitiva.
    
       2 – Dinastia Chang (1520-1030 a C). Trabalhos em bronze. Arte da “escapulamância” ou de predições e registros gravados em omoplatas de boi ou em cascos de tartaruga.
    
       3 – Dinastia dos Estados Guerreiros com primazia da casa Tcheu (povo do oeste) – (1027-318 a C). Primeiro intento de feudalização e Cultura Peripatética (sábios e os seus discípulos que viajavam de uma cidade a outra, com a finalidade de aconselhar os príncipes feudais). Representativa dessa cultura foi a Academia de Xuan, em 318 a C.
    
       4 – Dinastia Chin, sob o imperador Che-Huan-Ti (Di) – (221-202 a C.). Unificação da China sob um regime de despotismo hidráulico, que efetivou a padronização da língua chinesa. O denominado Império de todos sob o Céu, era governado pelo imperador, servido por um eficiente sistema burocrático que, como frisa Colin Ronan, “veio a servir de padrão para todos os governos chineses posteriores; dividiu o país em províncias, iniciou uma padronização em larga escala (dos pesos e medidas, da largura das estradas, do tamanho das carroças, etc.) e uniu várias pequenas estruturas de defesa para formar a Grande Muralha, provavelmente o maior projeto de construção de todos os tempos” [Ronan, 1987: II, 14].
    
       5 – Dinastia Han (202 a C. – 265 d. C.).
Iniciada pelo imperador Wu Ti. Consolidação do Mandarinato. Adoção da doutrina de Confúcio. Implantação da diplomacia expansionista alicerçada no comércio, acompanhando a “rota da seda”. Invenção do papel. O Budismo hindu penetra na China. Romanos e sírios romanos visitam o país.
    
       6 – Dinastia Wei, de índole militar, iniciada pelo general Chin (265-490). Regime militar, em decorrência da reação da sociedade chinesa, em face das invasões mongólicas. Desenvolvimento paralelo da ciência.
    
       7 – Dinastia Tang, de índole comercial e militar, preservando a burocracia do Mandarinato (490-919). Construção do Grande Canal Imperial, no qual trabalharam 5,5 milhões de pessoas, sendo que 2 milhões morreram durante os trabalhos. Confronto com os muçulmanos, na batalha do Rio Talas (751), que marcou o fim da expansão chinesa para o Ocidente, bem como do avanço dos muçulmanos no Oriente. Tratado do imperador Tang com o califa Harun-al-Rachid (chefe muçulmano imortalizado nas Mil e uma noites). Intercâmbio cultual com Pérsia e Síria. Expansão do Budismo e entrada de religiões estrangeiras (cristianismo, maniqueísmo, zoroastrismo). Florescimento da arte e da literatura.
    
       8 – Dinastia Sung, marcada pela instabilidade, decorrente das invasões mongólicas (960-1279). Apesar da agitação política, registra-se a presença de uma grande atividade cultural (em ciência e tecnologia principalmente). Empurrados pelos mongóis, os chineses transferem o governo para o sul, estabelecendo a capital em Hangchow.
    
       9 – Dinastia Yuan (mongólica) (1279-1368). Abertura da sociedade a muçulmanos e estrangeiros ocidentais (Marco Pólo, por exemplo). Melhoria das estradas e das vias navegáveis. Publicação do Grande Atlas por Zhu-Su-Ben. Estabelecimento em Pequim de importante observatório astronômico.
    
       10 – Dinastia Ming após a derrota dos mongóis pela elite chinesa (1368-1644). A capital do Império é fixada em Pequim. Avanços da pesquisa em botânica. Chegada dos jesuítas. Os chineses abandonam o domínio do mar, abrindo o Oceano indico aos árabes e aos portugueses.
    
       11 – Dinastia Manchu (1644-1912). Assimilação, pelos chineses, da ciência ocidental. Enfraquecimento da figura do Imperador e progressiva adoção dos modelos ocidentais em matéria política.
    
       12 – Regime republicano (1912-2008). Três momentos podem ser destacados: da proclamação até a ascensão de Mão, período maoísta e período contemporâneo em que o comunismo chinês se reformula no contexto do Confucionismo e com a abertura ao capitalismo ocidental, sem abandonar, contudo, a Instituição do Mandarinato.
    
       Não há, no mundo de hoje, sobre a Terra, uma nação que tenha, como a China, uma memória cultural que abarque 4.500 anos. Esse fato confere aos chineses uma característica única no seio da globalização. Eles constituem o único país identificado com uma civilização milenar, que foi acumulando, ao longo das centúrias, memória invejável, que se preservou em decorrência da existência de um estamento que cuidou sempre dessa tarefa de manter vivo o DNA cultural: o Mandarinato.


       Os chineses inseriram, na sua cultura, duas importantes tradições: por um lado, de férrea unificação e de defesa; por outro, de expansão comercial. A primeira tradição sedimentou-se muito cedo, com a dinastia Chin (entre 221 e 202 antes de Cristo), quando da unificação do país, após o ciclo conturbado dos Estados combatentes. Essa unificação deu-se de modo feroz, mediante a eliminação das forças oponentes ao poder central do soberano. E sedimentou a prática defensiva do vasto império mediante o isolamento do mundo exterior, garantido pela construção da Grande Muralha (com quase 5.000 quilômetros de extensão), uma obra somente possível graças ao modelo de despotismo oriental, que foi reforçado, alguns séculos mais tarde, com as obras hidráulicas empreendidas pela dinastia Tang (490-919).
    
       A segunda tradição, de expansão comercial, nasceu também muito cedo, ao longo da dinastia Han (202-265), e foi acompanhada pela a adoção do Confucionismo. Essa tradição viu-se reforçada em momentos posteriores como a dinastia Tang, e especialmente ao longo da dinastia mongólica Yuan (1279-1368), mediante a efetivação de grandes trabalhos de construção de vias de comunicação, o incremento da navegação e a publicação do Grande Atlas (tudo isso, evidentemente, em função da expansão comercial).

A novidade da China atual repousa, justamente, na retomada, nos atuais momentos de agressiva globalização, desses dois elementos culturológicos, que funcionam, como diria o general Golbery, à maneira das “sístoles e diástoles do coração do Estado”. Afirmação de uma política defensiva, pensada ao redor do conceito de “Mundo Murado”, ao mesmo tempo em que ocorre o desenvolvimento de uma agressiva expansão comercial. Abertura à ciência e à tecnologia ocidental, sem, no entanto, abrir mão da preservação da própria identidade. Um aspecto não pode ser equacionado, na mentalidade da elite dirigente chinesa, sem que o outro seja também levado em consideração.
    
       Uma palavra sobre o conceito de Mundo Murado. A propósito, escreve Mark Leonard: “O fio condutor que liga as idéias emergentes da China sobre globalização é uma busca por controle. Pensadores chineses querem criar um mundo onde governos nacionais possam ser mestres de seu próprio destino, ao invés de se sujeitarem aos caprichos do capital global e da política externa americana. Eles querem investimentos, tecnologia e acesso ao mercado, mas não querem absorver valores ocidentais. Seu objetivo não é isolar a China, mas, sim, permitir que a China se junte ao mundo nos seus próprios termos. Em resumo, eles querem impedir que a China continue sendo achatada pela globalização” [Leonard, 2008: 134].
    
       Mundo Murado seria, portanto, a construção de uma globalização econômica presidida pela China como potência hegemônica e como formatadora de uma nova escala de valores, que incluiriam, certamente, o capitalismo, mas sobre bases diferentes das elaboradas pela cultura americana, no modelo que os chineses passaram a denominar de “Capitalismo Rio Amarelo”. Tal modelo capitalista “encoraja o uso de dinheiro público para inovação, um impulso de proteger a propriedade pública e reformas graduais de Zonas Econômicas Especiais”. Ora, esse modelo estaria seduzindo, na atualidade, não apenas países africanos. “Em sua busca por imitar o sucesso chinês, - frisa Leonard - países tão diferentes como Rússia, Brasil e Vietnã estão copiando a política industrial ativa de Pequim, que usa dinheiro público e investimentos estrangeiros para construir indústrias de capital intensivo. Esses países (...) desaceleraram – por vezes até mesmo reverteram – os programas de privatização que adotaram nos anos 1990” [Leonard, 2008: 137].

       Como o poderio americano ainda é muito grande, pensam os intelectuais chineses, convém, por enquanto, administrar o declínio dos Estados Unidos, de forma a que não seja por demais acelerado (uma queda excessiva impediria aos chineses de se beneficiarem, como o fazem agora, da tecnologia e dos recursos financeiros fornecidos pelos americanos). Mas, ao mesmo tempo, trata-se de que a China ganhe degraus no mundo globalizado, polarizando outros países ao redor do seu modelo de capitalismo marcado pela forte presença do Estado e por valores provenientes do patrimonialismo chinês.
    
       O modelo de gestão do Estado chinês assemelha-se, a meu ver, ao do patrimonialismo modernizador getuliano, em que o Executivo governa alicerçado nos Conselhos Técnicos Integrados à Administração. Justamente para garantir a criatividade em todos os aspectos da gestão pública, o governo chinês dá grande importância, hoje, ao desenvolvimento da sua elite pensante. Os chineses têm feito, nas duas últimas décadas, um esforço notável em prol de constituir centros de pesquisa de ponta e para preparar quadros para os mesmos. Esses centros agem como órgãos permanentes de consulta do Estado. Um exemplo: a CASS, que é a mais alta organização de pesquisa acadêmica nos campos da filosofia e das ciências sociais, reúne 50 centros de pesquisa, que abrangem 260 disciplinas e 4 mil pesquisadores em tempo integral. Essa elite realiza “a busca da China por autonomia intelectual”, sob o férreo comando do governo, que não desmobilizou, de forma nenhuma, os seus mecanismos repressivos, mas que também não toma medidas sem prévia consulta aos cientistas. Diríamos que as regras do jogo foram claramente assinaladas: você, como intelectual, pode participar desses organismos (nos quais será muito bem pago), pode até criticar o governo, mas em tudo isso há um limite: a manutenção incólume da estrutura de poder do Partido Comunista. Avançar o sinal tem como resposta a eficaz repressão que faz desaparecer dissidentes ou que, se necessário, não duvida em mandar passar os tanques por cima de ativistas ousados, como aconteceu na Praça Tiannamen em 1989.
    
       Dentro desse marco de tolerância, muito bem delimitado, os pensadores chineses estão preocupados com uma dupla pesquisa, que visa a reconciliar dois objetivos concorrentes: como ter acesso aos mercados globais, protegendo a China, ao mesmo tempo, “da ventania da destruição criativa que poderia (desabar) sobre seu sistema político e econômico”. Em outros termos, eles tratam de responder à indagação acerca de como “a China virá para desafiar o mundo achatado da globalização americana com um Mundo Murado, de criação própria” [Leonard, 2008: 29].
    
       Algo ficou de fora da escala de valores da civilização chinesa, nessa evolução de séculos que deságua na atual globalização? Certamente, o valor ausente é o da liberdade, na forma incondicionada e simples em que vingou na civilização ocidental, como direito inalienável do indivíduo, que o leva a organizar o poder de baixo para cima, a partir do reconhecimento dos direitos individuais à vida, à liberdade, às posses, como apregoava John Locke. Justamente os dois problemas enfrentados, a ferro e fogo, pela China contemporânea, dizem relação aos espaços em que a ameaçadora forma da liberdade individual passou a inspirar o funcionamento das instituições: o Tibet e Taiwan. No caso tibetano, é claro que a China sempre encontrou uma não sintonia figadal com a forma de liberdade religiosa, que se traduzia em instituições teocráticas liberais no regime de Lhasa (que levaram Leibniz a imaginar, no século XVII, uma China protocristã, convertida ao budismo tibetano, que faria aliança com o Ocidente, contra o Islã). No caso taiwanês, os chineses não aceitam o modelo republicano de liberdades presente na “província dissidente”. Se houver, nas próximas décadas, um confronto armado em que a China se engaje, certamente ele começará por Taiwan. A experiência de Hong-Kong situa-se, no contexto do vasto experimento democrático dos chineses, como uma “Área Especial” em que vigora a liberdade de comércio, mas em que foram garantidas, preventivamente, as instituições que ligam essa província ao governo central da China, sem que haja a possibilidade de emergirem formas contestatórias de gestão.

        O elemento que seduz, na China contemporânea é, certamente, o fabuloso desenvolvimento econômico, que age como uma espécie de chamariz para a modalidade de capitalismo “Rio Amarelo”. As características dele quebram todas as expectativas estatísticas. Como frisa conhecido estudioso: “A escala da China é impressionante; é quase impossível, para nós, entender suas estatísticas vitais. Com um habitante a cada cinco do globo, a entrada da China no mercado mundial, quase dobrou a força de trabalho global. Metade das roupas e calçados do mundo já têm uma etiqueta onde se lê Made in China; e a China produz mais computadores do que qualquer outro lugar do planeta. O apetite voraz da China por recursos está devorando 40% do cimento do mundo, 40% do carvão, 30% do aço e 12% de energia. A China está tão integrada na economia global que seus prospectos têm impactos imediatos em nossas vidas diárias: ao mesmo tempo em que dobra o preço do petróleo e corta pela metade o custo dos nossos computadores, mantém a economia dos EUA em circulação, mas afunda a indústria calçadista da Itália” [Leonard, 2008: 18].
  
       Terminemos destacando as perspectivas que se abrem, para a China, nesta quadra do seu desenvolvimento histórico:
    
       1 – Mudança de rumo, não abandono do Patrimonialismo. A China, com certeza, está longe de sair da tradição patrimonialista que já tinha sido apontada, nela, por Weber e por Wittfogel. Continuará o poder a ter “donos”. O abandono do comunismo maoísta pela atual elite dirigente não significou, de forma nenhuma, um rompimento com a tendência à privatização do poder por parte de uma elite ou de uma casta. O Mandarinato chinês se modernizou. Tornou-se o gestor de uma nova Sociedade Limitada capitalista. O capitalismo chinês não é uma economia aberta às sociedades anônimas. É um modelo de capitalismo dirigido desde o Estado. Ou seja, é um modelo capitalista administrado pelo Estado Patrimonial. Os proprietários da Sociedade Limitada são os dirigentes do Partido Comunista. Acionistas minoritários são aceitos. Mas não podemos deixar de ter dúvidas quanto ao alcance do poder deles em face dos interesses do Mandarinato. Quem não se ajustar – como aconteceu com a Google – tem de arrumar as malas e ir embora.
    
       2 – Inserção da prática democrática no contexto do Patrimonialismo de tipo estamental-confuciano. A China pós Mao mudou a base cultural da dominação patrimonialista. O antigo comunismo foi trocado por uma versão afinada com a secular tradição confuciana. Se vivo fosse, Napoleão diria: “arranhai um chinês, encontrareis um confuciano”. Lembremos que o grande general já tinha dito: “arranhai um russo, encontrareis um tártaro”. Ora, o Mandarinato chinês se reciclou, deixou de vestir trajes de militante camponês para aderir ao terno e gravata, engavetou Marx e desengavetou Confúcio. O Mandarinato, que é o estamento dominante do poder, professa essa milenar religião da disciplina, do trabalho, do comércio, do capitalismo à la chinesa. Professa e fortalece a crença de uma “democracia dos melhores” nas várias instâncias da administração. “Democracia dos melhores” que consiste em eleger unicamente aqueles candidatos mais capazes, que se afinem, também, com o conceito oficial de “Mundo Murado”. Assim como em algumas regiões surgiram as áreas econômicas especiais, também o governo de Pequim estimulou, recentemente, uma experiência de democracia à la ocidental no remoto município de Pingchang, sob a orientação de um dos intelectuais do Partido Comunista mais preparado em matéria de inovações, Yu Keping. No entanto, esta é uma experiência que mais parece, como diríamos no Brasil, “para inglês ver”, ao não ultrapassar os limites estreitos de um remoto município do interior; experiência que, se apresentar riscos, pode muito bem ser suspensa, de forma instantânea, pelo governo central.
    
       3 – Reforço ao Patrimonialismo de regimes ao redor do mundo, na Ásia, na África, no Oriente Médio e na América Latina. A forma pragmática em que a nova liderança chinesa está se relacionando com os diferentes países nessas regiões é muito especial. Não questiona direitos humanos nem liberdades fundamentais (como faz, por exemplo, com o ditador do Sudão, com os generais da Birmânia, com os irmãos Castro em Cuba ou com o líder da “Revolução Bolivariana” em Caracas). Interessa a Pequim que as relações econômicas andem bem. De forma indireta, via pragmatismo comercial, os chineses terminam reforçando os regimes de patrimonialismo tribal na África, de estalinismo atômico na Coréia do Norte, de patrimonialismo macunaímico e populista na América Latina, de terrorismo fundamentalista dos Aiatolás, no Irã. Os Mandarins vêm com bons olhos os problemas que esses países causam à diplomacia européia e norte-americana. É uma forma indireta de ver reforçado o seu poder no cenário internacional. Só não toleram, e aniquilam, qualquer intento de patrimonialismo islâmico no seu próprio território, como fizeram com os revoltosos da província de Xianjiang em 2007 e 2008.
    
       4 – Reforço à presença militar chinesa em potências emergentes e em países do terceiro mundo. Essa estratégia inclui venda de armas e visitas de oficiais latino-americanos à China. A propósito, o estudioso Loro Horta informa: “Desde 2000, a China emprega uma estratégia diplomática paciente e de amplo escopo em relação à América Latina. A nova ofensiva sedutora do Exército de Libertação Popular (ELP) vem se consolidando de forma gradual, numa posição segura. As iniciativas, além da venda de armas, permitem cada vez mais ao ELP criar uma base para a cooperação militar de longo prazo, num futuro não muito distante” [Horta, 2009: 30]. Nos últimos anos, formaram-se em academias militares chinesas mais de 100 oficiais representantes das três forças de 12 países latino-americanos. Esses números tendem a aumentar e a tornar cada vez mais forte a presença militar chinesa no subcontinente latino-americano. É o fenômeno que os estudiosos chamam de “diplomacia militar da China”.
    
       5 – Modelo estatal de financiamento da pesquisa. Aqui radica um dos gargalos para o regime de Pequim alcançar os Estados Unidos. No sistema americano, o próprio Estado estimula as indústrias privadas a realizarem trabalhos de pesquisa nas áreas mais sensíveis para o desenvolvimento tecnológico do país. Mas a pesquisa é financiada apenas em parte pelo setor público. Compete à iniciativa privada desenvolver os trabalhos, a fim de manter a competitividade em face das exigências do Estado. A iniciativa privada, estimulada, arca com o ônus da pesquisa. Na China, o financiamento é inteiramente estatal. Conseguirá o regime de Pequim desenvolver o volume de pesquisas em alta tecnologia que o país precisa para superar aos seus competidores ocidentais, notadamente os Estados Unidos? Conseguirão os chineses criar e manter, por longo tempo, um regime adequado de liberdade intelectual, sem o qual as pesquisas não avançam? Por enquanto, em áreas muito sensíveis, ainda eles dependem da tecnologia ocidental.

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       WITTFOGEL, Karl. Le despotisme oriental - Étude comparative du pouvoir total. (Tradução ao francês de Micheline Pouteau).
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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

1964, MEIO SÉCULO DEPOIS

Este artigo foi publicado, na Coluna de Opinião do jornal O Estado de S. Paulo, em 26 de Fevereiro de 2014

Há 50 anos eclodia a intervenção militar de 1964. Embora cogitada inicialmente como uma correção de rumo na desastrada ladeira por onde havia enveredado o populismo janguista, o regime castrense terminou durando mais do que se imaginara inicialmente e acabou por desgastar as Forças Armadas, em governos de força que se estenderam ao longo de duas décadas. Esse é um período suficientemente longo como para imprimir num país diretrizes novas e, também, para cometer erros conjunturais e estratégicos. Ora, ambas as coisas precisam ser analisadas, notadamente no ambiente universitário, que deve ser, nas sociedades hodiernas, o celeiro de ideias novas, bem como o filtro por onde passam os acontecimentos à luz crítica da razão, a fim de que, com esse patrimônio de ilustração, se beneficiem as gerações futuras.

No caso da avaliação do regime militar, não foi isso exatamente o que ocorreu no Brasil. As universidades brasileiras, em especial as públicas, controladas a partir da abertura democrática pela esquerda raivosa, acabaram fazendo da memória de 1964 ato indiscriminado de repúdio aos militares e às diretrizes por eles traçadas, fazendo com que uma cortina de fumaça terminasse pairando sobre essa importante etapa da nossa vida republicana.

As coisas não mudaram com a chegada dos esquerdistas ao poder, notadamente no ciclo do lulopetismo. A criação, pelo atual governo, da "Comissão da Verdade" visando a uma "omissão da verdade" e que coloca sob os holofotes a repressão praticada pelo Estado sem, no entanto, relembrar nada do terrorismo praticado pela esquerda radical, está a revelar que pouco se progrediu nesse terreno. A finalidade prevista com a tal comissão é clara: torpedear a Lei de Anistia, que abriu as portas para a volta dos exilados e firmou o início da abertura democrática.

Falemos, inicialmente, dos desacertos de 1964. A grande falha consistiu, a meu ver, no viés autoritário do regime militar, decorrente do fato de que os profissionais das armas não estão habilitados para a chefia do Estado, toda vez que são preparados - como lembrou com propriedade o saudoso amigo Paulo Mercadante (1923-2013) em Militares e Civis: a Ética e o Compromisso (Rio de Janeiro: Zahar, 1978) - para defender com coragem e eficiência os interesses soberanos da Nação, à luz da ética de convicção weberiana, que se caracteriza pela fidelidade aos princípios, sem que haja preocupação com o resultado da ação. Falta aos nossos homens de armas a sensibilidade da ética de responsabilidade, que exige que o governante calcule, nas decisões tomadas, as consequências que decorrerão para a comunidade, sendo esta, segundo Weber, a ética dos políticos.

Em segundo lugar, anotaria mais este ponto: por formação, os militares estão preparados para gerir a unanimidade decorrente da hierarquia e da obediência do profissional das armas. Afinal, ninguém realiza assembleias no front, quando as balas silvam sobre a cabeça dos soldados. Eles cumprem as ordens dadas por seus comandantes, sem discussão. Ora, a política é o reino do dissenso, em decorrência da nossa natureza racional essencialmente dialética, condição já apontada por Aristóteles (384-322 a. C.) na sua Política. A organização da comunidade politicamente estruturada deve ser pensada como construção de consensos a partir do dissenso, não como eliminação pura e simples deste. Esse é o difícil trabalho dos homens públicos, que precisam armar-se de dose infinita de paciência a fim de conciliar os interesses dos seus representados, os cidadãos que votaram neles.

Anotemos sumariamente os aspectos positivos do regime de 1964: a intervenção militar evitou que os comunistas tomassem o poder, instaurando uma ditadura do proletariado, com o banho de sangue que isso provocaria num país de dimensões continentais como o Brasil. A opinião pública sabe que o que a extrema esquerda buscava era isso. O Brasil não teve a sua "República das Farc", com que se debate até os dias de hoje o governo colombiano, depois de meio século de guerra, graças à corajosa intervenção das Forças Armadas, notadamente do Exército, que aniquilou a possibilidade de um território controlado pelos terroristas, sendo essa a finalidade perseguida pela guerrilha do Araguaia.

No que tange à economia, o Brasil transformou-se num país industrializado. Consolidou-se a indústria petroleira e desenvolveu-se a petroquímica, bem como a siderurgia e a fabricação de maquinaria pesada. A engenharia deu um grande salto para a frente, com as obras públicas que pipocaram pelos quatro cantos do território nacional.

Acelerou-se, por outro lado, a indústria bélica - em que pese o fato da falta de continuidade de uma política para o setor, como tem sido analisado oportunamente por Expedito Bastos, do Centro de Pesquisas Estratégicas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Efetivou-se, com o fantástico desenvolvimento das telecomunicações e com a política de abertura de estradas, a denominada - por Oliveira Vianna (1883-1951) - "circulação nacional", unindo ao centro nevrálgico do poder as regiões mais afastadas e ligando estas às mais importantes áreas metropolitanas do País.

O regime militar tinha um propósito, em que pese o viés autoritário evidentemente criticável. Mas hoje, 30 anos após os governos militares, carecemos de um projeto estratégico que nos indique para onde irá o País nas próximas décadas.

Este é o grande desafio: costurarmos uma proposta estratégica, no contexto da democracia que conquistamos, superando o vezo tutorial que empanou o regime de 1964.

*Ricardo Vélez Rodríguez é membro do Centro de Pesquisas Estratégicas da UFJF e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e professor emérito da Escola de Comando e Estado-maior do Exército (ECEME). 
E-mail: rive2001@gmail.com.  

domingo, 23 de fevereiro de 2014

A INFLUÊNCIA DE FRANCISCO SUÁREZ NA FILOSOFIA MODERNA



Francisco Suárez (1548-1617) representa, no contexto da Segunda Escolástica espanhola, o esforço mais sistemático em prol da busca de um contato com a modernidade. A sua preocupação fundamental consistiu em elaborar uma metafísica da substância compatível com a ciência moderna. Não poderíamos entender a real dimensão do jesuíta Francisco Suárez, sem situá-lo no contexto do rico movimento de renovação da filosofia espanhola nos séculos XVI e XVII.

Acompanhando a consolidação da nova oikouméne ensejada pelo grande período das navegações ibéricas dos séculos XV e XVI, surge na Espanha um movimento de renovação intelectual que visa a dar fundamentação à nova ordem mundial, num Império em que "não se põe o sol", como se dizia na época. O primeiro grande esforço de renovação consistiu na formação, em Paris, de uma nova geração de pensadores que passaram a sofrer a influência do nominalismo, a nova filosofia que pretendia se abrir ao conhecimento do concreto e ao experimental, em contraposição à contemplatio medieval. Presididos pela figura pioneira do sacerdote toledado Jacobo Magnus, que chegou a ser pregador na corte do rei francês Carlos VI no período compreendido entre 1381 e 1422, encontramos, no final do século XV e ao longo do século XVI, importantes filósofos de inspiração nominalista que recebem a sua formação em Paris ou que sofrem a influência dessa escola. Mencionemos os nomes de alguns deles: Andrés Limos, Agustín Pérez de Oliván, Alvaro Thomas (português), Jerônimo Pardo, os irmãos Luis e Antonio Núñez Coronel, Gaspar Lax, Juan Dolz, Juan Lorenzo de Celaya, Juan de Gélida, Juan de Oria, Gonzalo Gil, Bartolomé de Castro, Juan Martínez Silíceo, Domingo de San Juan, Pedro Margalho (português), Cristobal de Medina, etc. O nominalismo, nesses autores, corresponde geralmente ao estabelecimento de uma teoria do conhecimento que possibilita a apreensão experimental do mundo, mas que não exclui, de forma alguma, muito pelo contrário a integra, a rica herança do humanismo, amalgamando-a com uma versão mitigada do tomismo [Cf. G. Fraile, Historia de la Filosofía Española, Madri: BAC, 1985, vol. I, p. 327 seg.].

Em Salamanca, onde desenvolveu boa parte da sua docência, Francisco Suárez recebeu essa rica influência e teve oportunidade de confrontá-la com duas tentativas de reedição do tomismo, de inspiração tradicionalista com Domingo Báñez (1528-1604) e Juan de Santo Tomás (1589-1644) e aberta a outras correntes filosóficas, incluída a escola nominalista, com Francisco de Vitoria (1492-1546), Melchor Cano (1509-1560), Domingo de Soto (1495-1560), Pedro de Sotomayor (1511-1564), Bartolomé de Medina (1527-1580) e Luis de Molina (1536-1600). Diríamos que o problema com que se defrontava o nosso autor, na sua cátedra na Universidade de Salamanca, era o de formular uma nova filosofia que respondesse aos requerimentos da ciência moderna, estabelecendo no entanto uma ponte entre o que havia de aproveitável na metafísica do século XIII e no humanismo renascentista [cf. Fraile, Historia de la Filosofía Española, vol. I, p. 380-384; J. Enes, verbete "Francisco Suárez", in: Lógos, Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia,Lisboa/São Paulo: Verbo, 1992: p.308-317].

Situada nesse contexto, a obra de Francisco Suárez pode ser apreciada em toda a sua originalidade. O pensamento do filósofo espanhol deve ser aglutinado em torno a três grandes pontos: metafísica, antropologia filosófica e filosofia política. No que tange à metafísica, a obra mais representativa de Suárez  são as suas Disputationes Metaphysicae, escritas em 1597 e publicadas pela primeira vez em 1608. Com esta obra, o pensador espanhol possui o mérito de ter sido o primeiro autor europeu em formular uma sistematização metafísica rigorosa, aberta à ciência moderna, portanto passível de explicar um mundo regido pela apreensão realista dos fenômenos, abandonando a perspectiva universalista das metafísicas do século XIII, que privilegiavam a idéia de substância ou quidditas, e que eram caudatárias da tradição, seja mediante o ensino filosófico recorrendo unicamente à lectio dos clássicos (Aristóteles e São Tomas), seja através da discussão de assuntos rigorosamente emergentes da problemática teológica (nas chamadas quaestiones disputatae).

Suárez parte do pressuposto (tipicamente moderno, porquanto emergente de uma perspectiva antropocêntrica) de que, como ponto de partida, a filosofia deve criar a sua própria metodologia e assinalar o âmbito da sua validade, mediante a formulação de uma metafísica sistemática acorde unicamente com as exigências lógicas da razão. Somente assim, pondera o pensador espanhol, poderá ser empreendido, numa segunda etapa, com segurança e rigor, o estudo da Teologia. A sua concepção aproximava-se mais da apreensão da essência do concreto ou estidade (haecceitas), postulada pelos nominalistas ingleses Duns Scott e Guilherme de Ockham. A respeito, frisa o historiador das idéias G. Fraile: "Uma nota caraterística de Suárez é a sua preocupação pelo real e concreto, evitando o conceitualismo e o abstracionismo. Esforça-se por fazer uma filosofia realista, baseada nas coisas tal como são, estudando-as em si mesmas e não em abstrações mentais. Por isso insiste em que a metafísica não somente trata de conceitos, mas que versa sobre seres reais. A idéia central da metafísica suareziana consiste na contraposição entre dois grandes classes de seres reais: o infinito e o finito, com a finalidade de estabelecer uma relação de dependência essencial e total das criaturas em relação ao seu criador" [Fraile, Historia de la Filosofía Española, vol. I, ob. cit., p. 381]. O pensador espanhol deitou, assim as bases para as metafísicas racionalistas do século XVII (de Descartes, Leibniz e Espinosa).

No terreno da antropologia filosófica, as obras mais importantes de Suárez são o tratado De Anima (cujo manuscrito data de 1572, tendo sido editado em 1621) e De ultimo fine hominis ac Beatitudine (publicado em 1613). Contrastando com a perspectiva teocêntrica medieval, que colocava o homem numa dimensão eminentemente religiosa e universal, Suárez parte para estruturar, alicerçado na sua metafísica da realidade concreta, uma antropologia filosófica cujas duas notas caraterísticas seriam as seguintes: em primeiro lugar, que responda a uma rigorosa experiência do que é o homem de carne e osso, tal como se apresenta à experiência das ciências positivas e, em segundo lugar, que explique as caraterísticas humanas diversificadas, que estavam, na época, sendo postas em evidência graças às descobertas de novas terras.

No que diz relação à primeira exigência, o pensador salmantino parte com desassombro para a formulação de uma filosofia do homem que reflita os conhecimentos que sobre a constituição humana emergem das ciências positivas, notadamente da Medicina (Suárez discute, por exemplo, a problemática da unidade corpo-alma, à luz da hipótese dos transplantes de órgãos). No que tange à segunda exigência, o mestre espanhol interessou-se sobremaneira pelo fenômeno humano em outras culturas, tendo destacado que o norte das suas investigações no terreno era a sua razão experimental (per viam propriae inventionis), mais do que a tradição, embora não rejeitasse os ensinamentos da filosofia medieval, antes tentasse conciliá-los com o estado atual do conhecimento. Isso confere à obra de Suárez no terreno antropológico uma grande originalidade, bem como uma tensão conceitual relevante, fazendo dele um escritor dramaticamente ancorado na modernidade.

A propósito, frisa Salvador Castellote, na Introdução à edição espanhola do De Anima [Commentaria uma cum quaestionibus in libros Aristotelis De Anima, Madrid: Sociedad de Estudios y Publicaciones, 1978, vol. I, p. LXXI-LXXII]: "A Antropologia filosófica fundamentaria as ciências, não lhes dando. certamente, de forma literal, o método que deveriam seguir,  -- isso seria suprimir as ciências --, mas exercendo uma função crítica, advertindo que todo o discurso científico deve versar, em última instância, sobre a totalidade do homem. Destarte, seria talvez possível para a Antropologia filosófica proporcionar hipóteses abstratas de trabalho antropológico, deixando às ciências a sua concepção positiva E, de outro lado, as ciências determinariam a Antropologia filosófica, fazendo-lhe entender que não é possível conhecer bem o todo sem o conhecimento prévio das partes, da mesma forma que é impossível integrar as partes sem um prévio conhecimento do todo". O mestre espanhol sintetizava esse ponto de vista no seguinte princípio: "De hominibus autem obscurum est ad quam scientiam pertineant". Suárez emerge, assim, como o primeiro formulador moderno de uma antropologia filosófica em diálogo com as ciências positivas, abrindo caminho, assim, para a formulação ulterior, já no século XVIII, com Hume e Kant, da filosofia como crítica das ciências.

A rica abrangência da antropologia filosófica pensada por Suárez salta à vista no metafísico que no século XVII melhor recebeu o seu benfazejo influxo: Gottlieb Wilhelm Leibniz. O pensador alemão partiu para realizar o que Suárez tinha planejado: uma filosofia do homem alicerçada numa metafísica teodiceica rigorosamente racional, em constante diálogo com as ciências e aberta às novas manifestações culturais reveladas pelos descobrimentos. É significativa dessa inspiração ecumênica a abertura de Leibniz à cultura chinesa da sua época, estudada a partir do diálogo estreito com os missionários jesuítas. Para o pensador alemão, seria possível tentar uma amálgama criativa entre cristianismo e confucionismo, como forma de dotar o mundo de dois pólos de moderação, que garantissem a paz universal e o progresso: a Europa cristã, no Ocidente, e a China convertida ao cristianismo, mas sem perder o élan moral do confucionismo, no Oriente [cf. Leibniz, Writings on China, tradução ao inglês, introdução e notas de D. J. Cook e H. Rosemont Jr., Chicago: Open Court, 1994].

No que respeita à filosofia política, são representativas duas obras de Francisco Suárez: De legibus ac de Deo Legislatore (1612) e Defensor Fidei contra Jacobum Regem Angliae (1613). O cerne da sua concepção consiste na formulação do princípio da soberania popular que, difundido nas Universidades que a Espanha criou nas suas colônias americanas, ensejou o primeiro surto moderno de liberalismo autóctone, a partir do qual se iniciaram os movimentos independentistas dos comuneros (nas últimas décadas do século XVIII) e da independência (nas primeiras décadas do século XIX). Sobre essa base netamente ibérica iriam ser assimiladas, posteriormente, as idéias do liberalismo anglo-saxão e francês.

A respeito da concepção política de Suárez, escreveu Alain Guy, na sua Historia de la Filosofía Española [2a. edição, tradução de Ana Sánchez, Barcelona: Anthropos, 1985, p.  113-114]: "A análise do princípio de soberania é muito mais avançado (em Suárez) do que nos autores anteriores. Aqui, o poder é dado por Deus a toda a comunidade política e não somente a tal ou qual pessoa. Contra o cesarismo e os legistas, o maquiavelismo e o luteranismo, Suárez elabora, em soma, a teoria da democracia, que aprofundou ainda mais no seu Defensor Fidei. A noção de pacto ou de contrato social aparece já no doctor eximius. A comunidade política é constituída a partir de um primeiro consenso entre indivíduos ou famílias; ela pode delegar o poder a um grupo ou a uma só pessoa, mediante um segundo pacto, que Deus deixa à nossa discrição. Por regra geral a democracia, ou seja, o governo direto do povo pelo povo, será a forma mais natural de governo, e não carece de uma instituição particular, pois é conforme à espontaneidade do nosso ser. Mas pode ocorrer que não seja capaz de exercer essa administração sem intermediário e que seja necessário recorrer a um mandatário, investido então do poder público por transferência: este pode ser um rei ou uma oligarquia. De todas as formas, a autoridade do governo fica restrita a certos limites. Se o soberano abusar da sua potestas, converte-se num tirano, contra quem é legítimo lutar. Em caso extremo, é permitido matá-lo, uma vez esgotados todos os meios para induzi-lo ao arrependimento".