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quinta-feira, 16 de abril de 2015

DE PENSAMENTOS E FALAS NA LÍNGUA PORTUGESA

A família deste escriba, na fazenda El Carmen, perto de Bogotá. Da esq. para a dir.: Alberto Vélez Rodríguez (1941-2004, irmão mais velho, que foi advogado e magistrado na Colômbia). Afonso (1947, irmão mais novo), Victória (mãe, 1912-2007), Maria Isabel (1949, irmã mais nova), Amparo e Magola (prima e tia), Maria Victoria (irmã mais velha, 1945-1982), Beatriz (prima) e este escriba. (Foto: álbum de família, 1952).
Fazenda El Carmen, no município de La Calera (Colômbia), onde este escriba passou a sua infância. A família refugiu-se nessa fazenda, que pertencia ao seu avô materno, o general Amadeo Rodríguez, durante a guerra civil denominada genericamente de "La Violencia" (1948-1958) (Foto, álbum de família).

Este artigo foi publicado no Porto pela revista Pontes de Vista, dirigida por Nuno Júdice, Celeste Natário, Maria Luísa Malato e Renato Epifánio 

Há quarenta e dois anos comecei o meu mergulho na cultura brasileira. O motivo foi simples: o acaso. Tinha casado, em 1971, com uma jovem carioca que depois seria, em 1974, a mãe da minha filha Vitória. Morávamos em Bogotá, na Colômbia. Em 1972, o DOPS do Rio de Janeiro começou a procurar pela minha esposa, que era professora da rede estadual de ensino do antigo Estado da Guanabara. Ela tinha participado, em 1970, em Riobamba, no Equador, de um congresso de professores latino-americanos e foi arrolada entre as pessoas que deveriam prestar indagatória acerca dos movimentos guerrilheiros que tinham enviado representantes para esse evento. Conheci-a nesse encontro. Em face da intimação da polícia, ela não teve dúvidas: para que o peso da repressão não caísse sobre a sua família, decidiu imediatamente regressar ao Brasil.

Eu, professor de esquerda, vinculado a organizações consideradas como terroristas pelo regime militar, precisava urgentemente de um álibi para viajar ao Brasil. Dirigi-me ao ICETEX, o instituto do governo colombiano que concedia bolsas para estudos no exterior. Buscava algum curso de pós-graduação. A secretária mostrou-me as bolsas disponíveis. Encontrei uma, oferecida pela OEA na Universidade Católica do Rio de Janeiro, na área de “Pensamento Brasileiro”. Candidatei-me e, em poucos meses, obtive a bolsa desejada.

Viajei imediatamente ao Rio de Janeiro, no mês de Fevereiro de 1973. Era carnaval. Do hotel em que provisoriamente me hospedava, o Itajubá, saí, na terça-gorda, dar um passeio pelas ruas do  centro do Rio. Tentando chegar, por entre os foliões, à avenida Rio Branco, terminei entrando, sem perceber, no bloco “Bafo da Onça”. Naquela barroca multidão de arlequins, clóvis, colombinas, monstros antediluvianos e sambistas seminuas, eu, militante trotskista, cheguei à seguinte conclusão: “Jamais haverá uma revolução no Brasil”. Revolução para valer, não de cima para baixo (como as que se fazem por aqui), mas de baixo para cima, como as acontecidas no mundo hispano-americano. O carnaval tudo dissolve nesse tsunami de alegria primitiva, chope, sexo e deixa prá-la, que é a atitude prevalecente ao longo da festa do Rei Momo.

Como o curso para o qual tinha recebido bolsa da OEA tinha marcado as matrículas para quarta-feira de cinzas, sai bem cedo para o campus da PUC, na Gávea. Contra as minhas expectativas de me tornar aluno do mestrado em “Pensamento Brasileiro” nessa conceituada Universidade, tive de esperar até a segunda-feira seguinte. Somente nesse dia, contando com a pachorrenta diligência pós-carnavalesca dos burocratas, consegui fazer a minha matrícula.

Percebi que a medida do tempo é diferente no Brasil. Oito horas da manhã pode significar várias coisas: oito e quinze, oito e meia, oito e quarenta. Ninguém se incomoda com essa elasticidade das horas. Lembrava-me dos meus tempos de estudante universitário na Colômbia. Era praxe o bedel da Faculdade fechar as portas quinze minutos após o início da aula. Essa era a prática nas Universidades. Para mim, foi uma descoberta e tanto ver que os meus colegas de mestrado na PUC chegavam ou em cima da hora, ou com longuíssimos trinta minutos de atraso. Descobri que, para os cariocas, “paciência” era a palavra pronunciada em face de situações estressantes. Boa atitude, aliás, para preservar a saúde mental. Atitude ruim, no entanto, para chegar a tempo aos compromissos.

Encontrava, ao chegar à Faculdade, o meu mestre Antônio Paim, tranquilamente sentado, esperando pelos alunos. Algumas vezes cheguei mais cedo, com trinta minutos de antecedência. Lá estava invariavelmente o professor, que seria o meu orientador da dissertação de mestrado e, posteriormente, da tese de doutorado em Pensamento Luso-Brasileiro, cursado na Universidade Gama Filho. Fiquei com a pulga atrás da orelha. Será que o ilustre docente, ex-membro do PC e que estudou na Universidade Lomonósov de Moscou, passava a noite na cadeira da sala de aula? Antônio Paim era – e ainda é – um autêntico kantiano. O imperativo categórico do cumprimento rigoroso de horários forma parte das suas convicções éticas.

Nessa minha primeira incursão na cultura brasileira, no curso de mestrado, tive de fazer um duplo esforço: de aperfeiçoamento da língua portuguesa, por um lado, dado que falava um sofrível “portunhol” e, por outro, de estudo da história do Brasil, tão diferente da dos restantes países latino-americanos, herdeiros da tradicional instabilidade hispânica. Nem o México, que teve a experiência imperial, conseguiu estruturar instituições estáveis ao longo do século XIX. Somente o Brasil se levanta por cima da poeirenta tradição de golpes e contragolpes nesse cenário de instabilidade. A instituição da Monarquia, com Dom Pedro II, ensejou amplo período de estabilidade institucional, notadamente na segunda metade do século XIX.

Do curso de mestrado colhi frutos valiosos. O primeiro deles, a descoberta da literatura política liberal dos séculos XVII, XVIII e XIX, ao ensejo das leituras indicadas pelo meu orientador. Li, sob a rigorosa cobrança dele, a obra de Locke, Investigação sobre o entendimento humano e Segundo tratado sobre o governo civil, bem como os seus ensaios sobre educação e sobre a tolerância. Li de Kant A paz perpétua, de Tocqueville, A democracia na América e O antigo regime e a Revolução, dos publicistas americanos O Federalista, o Senso comum de Thomas Paine, O que é o Terceiro Estado? De Sieyès, Princípios de política de Benjamin Constant, além dos escritos de John Stuart Mill sobre a liberdade e o governo representativo.

Li, evidentemente, os pensadores liberais do período imperial: Silvestre Pinheiro Ferreira, Domingos Gonçalves de Magalhães, Paulino Soares de Sousa, visconde de Uruguai e a obra dos críticos liberais do Império, notadamente Rui Barbosa e Tobias Barreto. Todas essas leituras foram efetivadas ao longo do primeiro ano do mestrado, a fim de me preparar para a escrita da dissertação que teve o seguinte título: A filosofia política de inspiração positivista. Tratava, nela, acerca do modelo de república autocrática elaborado por Júlio de Castilhos e que funcionou no Rio Grande do Sul entre 1889 e 1930, sendo o modelo de organização autoritária republicana que Getúlio Vargas implantou em nível nacional na Revolução de 1930.

O segundo fruto valioso que colhi no mestrado foi ter me distanciado criticamente do pensamento marxista, pelo qual tinha enveredado ao longo da década de 60. “O véu da ignorância” foi rasgado ao ensejo das leituras às que me vi compulsoriamente obrigado pelo meu orientador, a quem agradeço, sempre, a sua ação educadora. É possível, sim, deixar as sombras da ideologia para enveredar pelo caminho estreito do pensamento crítico, a fim de abandonar o “caminho da servidão”, como diria Hayek. Sem a orientação e a cobrança rigorosa de Antônio Paim não teria conseguido superar tão rapidamente os meus preconceitos hauridos ao ensejo das leituras da “vulgata marxista”, tão comum no meio latino-americano!

Tratarei, a seguir, de dois pontos que são introdutórios às pesquisas que ao longo destes anos desenvolvi no Brasil. Em primeiro lugar, de que forma entendo a diferença entre Filosofia e Ciência. Em segundo lugar, como aparece a dinâmica do Lógos na meditação brasileira, a partir das crenças fundamentais que dão ensejo à reflexão filosófica.
I - Filosofia e Ciência: as diferenças no seio da cultura luso-brasileira.
Na tradição luso-brasileira, herdeira das Reformas Pombalinas (ocorridas em Portugal, na segunda metade do século XVIII), a distinção entre Filosofia e Ciência ficou confusa. Ou melhor: a Filosofia passou a ser reduzida simplesmente à Ciência Aplicada, como muito bem destacou Antônio Paim. Configurou-se, assim, a corrente do “Empirismo Mitigado”. Destarte, nas Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, no sistema de ensino reformado por Pombal, Filosofia seria algo semelhante à Ciência Prática. Na obra de Luiz António Verney, que passou a ser a expressão mais fiel da Filosofia no Ciclo Pombalino, ficou clara essa idéia: “Eu suponho – frisava este autor - que a Filosofia é conhecer as coisas pelas suas causas; ou conhecer a verdadeira causa das coisas. Esta definição recebem os mesmos peripatéticos, ainda que eles a explicam com palavras mais obscuras. Mas, chamem-lhe como quiserem, vem a significar o mesmo, v. gr.: saber qual é a verdadeira causa que faz subir a água na seringa é Filosofia; conhecer a verdadeira causa por que a pólvora, acessa em uma mina, despedaça um grande penhasco é Filosofia; outras coisas a esta semelhantes, em que pode entrar a verdadeira notícia das causas das coisas, são Filosofia”.
Consequência: a cultura luso-brasileira mergulhou em rasteiro praticismo, que esperava da Filosofia efeitos úteis, jamais a meditação sobre o sentido do Ser. Coube a Silvestre Pinheiro Ferreira, com as suas Preleções Filosóficas (1813) fazer a crítica, no Brasil, a essa corrente e abrir as portas, assim, para uma adequada compreensão da Filosofia, que a liberasse dessa estreita visão.
Estas breves palavras têm como finalidade mostrar a importância de compreender a Filosofia na sua distinção em face do pensamento científico. Pois se bem Silvestre Pinheiro Ferreira fez a crítica ao Empirismo Mitigado de Pombal, o espírito desta abordagem ficou presente até os dias de hoje na nossa cultura, ao abrigo da tendência Cientificista, que passou a ser adotada por muita gente, incluindo, nestas últimas décadas, os marxistas de todas as vertentes. O Positivismo de Comte, diga-se de passagem, vingou tão profundamente em terras brasileiras, em decorrência do fato de, no nosso DNA cultural, ter-se abrigado desde cedo o vírus cientificista, ao ensejo do Pombalismo. É imperativo, por isso, distinguir Filosofia de Ciência. Nos seguintes pontos podemos estabelecer essa distinção:
1 – Do ponto de vista do Método, Ciência e Filosofia procedem de formas diferentes. Ao passo que o método científico assinala um caminho que, partindo do menos seguro (a hipótese), encaminha-se para afirmações mais firmes, porquanto testadas na observação e na experimentação, (esse seria o momento da formulação das leis científicas), o método filosófico percorre um caminho contrário: de uma vivência profunda que revela o sentido insubstituível da existência, partem os filósofos para uma explicitação conceitual dessa vivência. Ou seja: o ponto de partida é mais claro do que o ponto de chegada, pois quando tentamos explicitar a vivência de “situações-limite”, as palavras ficam curtas. “Não tenho palavras com que expressar o que senti”, essa seria a confissão de quem pretende explicitar, na linguagem, a vivência desse tipo de situações. Filósofos e poetas irmanam-se num ponto: os seus escritos traem a inspiração original, porquanto nem um nem outro ficam satisfeitos com a explicitação da vivência original na linguagem (poética, no caso dos segundos, conceitual, no dos filósofos).
2 – A linguagem científica parte para a matematização, ao passo que a filosófica dela se afasta. Todas as ciências, mesmo as humanas, aspiram a traduzir de forma exata os seus achados; isso explica o farto uso das matemáticas na linguagem científica, seja da matemática pura, no caso das ciências exatas, seja da estatística, no caso das demais ciências. A Filosofia, ao contrário, afasta-se da matemática, em decorrência de que os seus conceitos não exprimem quantidades que possam ser traduzidas de forma exata. Seria inadequado falar, por exemplo: “essa pessoa é 60 por cento corrupta”. Como seria despropositado o fato de o namorado falar para a namorada: “te amo num 80 por cento”. Posto que a Filosofia parte de vivências profundas, e pelo fato de estas não serem matematizáveis, não procede, portanto, a linguagem filosófica como a científica e se afasta da expressão matemática dos seus achados.
É claro que, ao longo da História da Filosofia, apareceram autores que tentaram estabelecer uma ponte (ou uma simbiose, no caso dos neopositivistas do Círculo de Viena) entre matemáticas e pensamento filosófico. Pitágoras pretendia que a perfeição das esferas celestes fosse traduzida pela matemática. Wittgenstein tentou estabelecer as bases de uma meta-matemática que daria alicerces ao saber científico e anularia qualquer discurso sobre hipóteses não solúveis, colocando para baixo do tapete da história a metafísica. No caso pitagórico, poderíamos argumentar que os números têm uma significação simbólica (a perfeição seria traduzida em regularidades matemáticas), sem que isso significasse que qualquer conceito filosófico tivesse de transitar pelos caminhos da matemática. No caso de Wittgenstein, ele próprio encarregou-se, na última fase da sua obra, de deitar por terra a pretensão de que só a matemática basta no terreno do conhecimento, ao colocar este em face do misticismo, um tipo de conhecimento não matematizável.
3 – Os conceitos, em Ciência, têm uma significação unívoca (do mesmo sentido), no seio de determinada disciplina (o químico sabe exatamente o que significa H²O ou H²SO4). Na Filosofia, os conceitos têm uma significação análoga, ou seja, são semelhantes na diversidade. O termo dialética, por exemplo, possui uma significação análoga, não unívoca, em Sócrates, Aristóteles, Hegel e Marx. Há uma semelhança na diferença. Para Sócrates, dialética é a arte do diálogo, ao passo que para Aristóteles é a característica marcante dos raciocínios referidos aos homens, para Hegel a forma contrária em que se manifesta o Espírito Absoluto nas suas criações culturais e em Marx é a forma de oposição em que se relacionam as forças produtivas.
4 – Toda ciência, mesmo que seja muito abstrata, possui uma parte aplicada que ajuda a transformar o mundo, ao ensejo da tecnologia (que resolve problemas). Uma ciência que não tenha nenhuma utilidade é simplesmente abandonada, como foi o caso da astrologia e da alquimia, formas “científicas” de conhecimento muito valorizadas na Antiguidade, mas que foram perdendo a sua credibilidade como ciências, na modernidade, ao não produzirem os efeitos almejados: a pedra filosofal, no caso da alquimia; a solução para o enigma da vida humana, no caso da astrologia. Podemos afirmar, em consequência, que a ciência, do ângulo da sua aplicabilidade, tem valor pela sua utilidade. Já a Filosofia não aspira a resolver problemas, mas encara o grande problema não solucionado pela ciência: a dimensão de sentido da existência. Ela tem um valor de per se, como algo que faz bem à nossa existência (de forma semelhante a como valorizamos uma obra de arte, pela vivência da emoção estética que nos enleva). A Filosofia, concluímos, possui utilidade pelo seu valor.
5 – É característico da Ciência a sua especialização, na medida em que se vão refinando os instrumentos de análise. Justamente essa tendência deixa ver, na contemporaneidade, a importância de uma abordagem interdisciplinar dos problemas, justamente para tentar reconstituir a totalidade dos objetos estudados. A Ciência se especializa do ponto de vista do seu objeto formal (o aspecto específico sob o qual ela estuda o seu objeto material). Já a Filosofia não parte para encarar o homem de forma parcial (do ângulo do seu objeto formal), mas o abarca como totalidade existente. A Filosofia constitui a mais radical forma de abordar uma realidade, do ângulo da sua presença no Ser. Não faria sentido, por exemplo, indagar pelo “sentido da existência da minha mão esquerda”, quando o existente sou eu na minha integralidade. A Filosofia, sob este viés, é holística, o seu método visa a reconstituir totalidades, as suas indagações pelo sentido da existência abarcam todo o homem e se estendem a todos os homens. 
II – A dinâmica do Lógos na meditação brasileira: as crenças fundamentais e a reflexão filosófica.
Quando falamos à luz do Lógos, damos vazão às nossas crenças fundamentais. Ora, quais seriam, no caso da meditação filosófica brasileira, as crenças que deram ensejo às nossas idéias mestras? Considero que, no caso, entraram na torrente da nossa reflexão duas séries de convicções alicerçadas sobre crenças profundas: primeiro, retomando a herança portuguesa da “filosofia da saudade”, uma linha de pensamento com raízes neoplatônicas e barrocas, que terminou desaguando na denominada “Escola de São Paulo”.

Constitui o núcleo doutrinário dessa tendência, a crença radical de que há um arquétipo preexistente ao qual tudo deve ser referido para ter validade e, paralelamente, de que houve uma “queda” da atual feição da realidade, que constituiria, assim, cópia imperfeita da plenitude ôntica de um passado primordial que cumpre reviver, mediante um processo catártico de índole pitagórico-platônica. Constitui esta variante uma retomada do neoplatonismo. Essa linha de pensamento se formou hodiernamente, no caso brasileiro, ao redor do pensamento de Vicente Ferreira da Silva, que elaborou uma filosofia com tintes órficos e numinosos de intuição do mistério do Ser, dando continuidade, na nossa meditação, à rica tradição ensejada pela “metafísica da saudade”, tão densa na reflexão portuguesa moderna e contemporânea. Esta linha de pensamento aflora hoje na tendência denominada da “filosofia portuguesa”, fartamente estudada por Antônio Braz Teixeira e, mais recentemente, por uma geração de jovens pensadores aglutinados ao redor da revista fundada no Porto em 2008, por Celeste Natário, Paulo Borges e Renato Epifânio.

A segunda linha de pensamento passou a girar ao redor de outra herança portuguesa: a do Iluminismo consolidado na obra pombalina e na sua reforma educacional, que afetou profundamente as nossas instituições de ensino e a meditação filosófica, tendo-as condicionado ao que se denominou de paradigma do “empirismo mitigado” e da postura “cientificista”. Consolidou-se tal tendência à luz da crença de que haveria uma ciência primordial de índole prática, à qual deveria ser referido todo o arcabouço do saber, a ser administrado por um líder, no contexto da concepção do despotismo ilustrado. Velha reencarnação do iluminismo absolutista ensejado na França por Luís XIV que, em Portugal, encontrou o seu ponto alto no reinado de Dom José I e do seu primeiro-ministro o marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Mello, na segunda metade do século XVIII.

A manifestação contemporânea de tal tendência na meditação brasileira se dá na corrente do cientificismo marxista que, misturada a formas agressivas de leninismo, como o pensamento gramsciano, encontrou canais de realização política na era lulopetista, que chegou ao poder, com Lula, nas eleições presidenciais de 2002. Na seara doutrinária, tal corrente encontrou adequado canal de manifestação na “teologia da libertação”, um de cujos arautos, no terreno filosófico, foi o padre Henrique Cláudio de Lima Vaz. A manifestação mais abrangente dessa tendência do cientificismo no século XX foi, na realidade brasileira, a vertente conhecida como “segunda geração castilhista,” que encontrou em Getúlio Vargas o seu mais importante demiurgo. Getúlio se alicerçou no positivismo gaúcho e no saint-simonismo, bem como na doutrina do “autoritarismo instrumental” formulada por Oliveira Vianna, da qual se louvou, outrossim, o regime militar (1964-1985) para a sua ação reformista.

Uma terceira linha de pensamento consolidou-se a partir da nossa experiência como Nação, que tentava construir o Estado como instrumento de integração dos clãs esparsos na vastidão continental das fronteiras, que foram estrategicamente alargadas sobre o Império espanhol, à luz do Tratado de Tordesilhas, mantendo a unidade nacional e a identidade linguística. Essa experiência foi forjada pelos estadistas do Império e pela elite denominada por Oliveira Vianna de “Homens de Mil”. A partir de tal instância cultural foi formulado o ecletismo espiritualista do século XIX por Domingos Gonçalves de Magalhães, visconde de Araguaia, que deitou os alicerces doutrinários para a obra civilizacional e a construção das Instituições do governo representativo, consolidadas no Segundo Reinado.

A crença fundamental que alimenta o arcabouço doutrinário desta tendência foi a de que somente na defesa intransigente da liberdade e da consciência individual seria possível construir, de forma duradoura, as instituições que garantissem a dignidade humana. Afinou-se assim, esta tendência com as modernas versões do liberalismo clássico de Locke, Kant, Jefferson, Tocqueville, etc., constituindo versão política alternativa ao democratismo rousseauniano.

A partir da crítica de Tobias Barreto e Sílvio Romero (os mais destacados representantes da denominada Escola do Recife) ao cientificismo de inspiração pombalina e positivista, estruturou-se a Corrente Culturalista que enriqueceu a convicção do ecletismo espiritualista em prol da liberdade e da consciência individual com o desenvolvimento doutrinário de Kant e do neokantismo. Esta escola de idéias, cujos máximos representantes na atualidade são Miguel Reale e Antônio Paim é, sem dúvida, a que maior envergadura tem mostrado no que tange à sua vitalidade e à função crítica, tanto dos dogmatismos quanto do autoritarismo que, no ciclo republicano, forjou-se nos vários momentos em que se tentou reeditar a “ditadura científica”.


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