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quarta-feira, 29 de junho de 2016

AQUILES CÔRTES GUIMARÃES (1937-2016)


Grande perda para a Universidade brasileira, para a Academia Brasileira de Filosofia e para todos os que cultuamos o estudo do pensamento brasileiro. A morte de Aquiles Côrtes Guimarães, acontecida hoje, no Rio de Janeiro, deixa-nos de luto. 

Aquiles, meu amigo e colega de estudos do Curso de Doutorado em Pensamento Luso-Brasileiro, oferecido pela Universidade Gama Filho entre as décadas de 70 e 90, destacou-se como um dos principais estudiosos da Fenomenologia no Brasil e da sua influência no campo específico dos estudos jurídicos. Incentivou e orientou gerações de jovens pesquisadores tanto no que se refere à pesquisa e ao estudo da Filosofia Contemporânea na Universidade Federal do Rio de Janeiro e na UERJ, como no relacionado ao aprofundamento nas fontes e manifestações modernas e atuais do Pensamento Brasileiro. 

Aberto às várias vertentes da Filosofia, Aquiles, como membro do Instituto Brasileiro de Filosofia e da Academia Brasileira de Filosofia (da qual foi um dos membros fundadores), incentivou a pesquisa pluralista e a tolerância intelectual. Como membro atuante do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, com sede em Lisboa, participou ativamente dos Colóquios "Tobias Barreto" e "Antero de Quental" organizados, em Portugal e no Brasil, por Antônio Braz Teixeira, José Esteves Pereira e José Maurício de Carvalho, ao longo dos últimos vinte anos. Participou também, de forma marcante, dos Encontros Nacionais de Professores e Pesquisadores da Filosofia Brasileira, realizados na Universidade Estadual de Londrina pelo saudoso amigo Leonardo Prota (1930-2016). Deixa obra volumosa que enriquece a Estante do Pensamento Brasileiro, bem como a referente à Filosofia do Direito e à Fenomenologia.

Entre 1985 e 1991 tive oportunidade de trabalhar, a convite de Aquiles, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no Curso de Mestrado em Estudos de Problemas Brasileiros. Motivado por esse convite, apresentei-me ao Concurso para Professor dessa Universidade, tendo sido vinculado ao Departamento de Filosofia.

Aquiles nasceu em Aimorés (Minas Gerais), em 1937. Cursou o Bacharelado em Filosofia no Rio de Janeiro, na antiga Universidade do Brasil e em Direito, na Universidade Federal Fluminense. Fez o Mestrado em Filosofia no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ (1977), tendo concluído na Universidade Gama Filho o seu doutoramento em Pensamento Filosófico Luso-Brasileiro (1982). Na UFRJ, onde foi chefe de Departamento e Coordenador da Pós-graduação em Filosofia, implantou a disciplina Filosofia Brasileira. Essa mesma disciplina foi por ele criada na UERJ, onde se desempenhou em importantes cargos administrativos, tendo sido ali um dos criadores do Curso de Mestrado e Doutorado em Filosofia do Direito. Presidiu a seção carioca do Instituto Brasileiro de Filosofia e foi consultor do Ministério da Educação em assuntos ligados à pós-graduação em Filosofia.

Para sua esposa e familiares, registro aqui os meus sentidos pêsames.

Dentre as várias obras publicadas por Aquiles, destacam-se as seguintes: Existência e verdade no pensamento de Farias Brito (1977), Farias Brito e o existencialismo no Brasil (1979), A formação do Pensamento Brasileiro (1981), Momentos do pensamento luso-brasileiro (1981), O tema da consciência na filosofia brasileira (1982), Partidos políticos e sistemais eleitorais no Brasil (1982), Cinco lições de Filosofia do Direito (1997), Pequenos estudos de Filosofia brasileira (1997). 

Entre os estudos relativos ao seu pensamento, vale a pena destacar o efetivado pelo professor Antônio Paim, na Apresentação que escreveu para o opúsculo de Aquiles, já mencionado, Pequenos estudos de filosofia brasileira. Outro estudo de destaque sobre a vida e a obra de Aquiles é constituído pelo verbete que ao saudoso amigo dedicou o Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro, no Dicionário Bibliográfico de Autores Brasileiros (Brasília: Senado Federal / Salvador-Bahia: CDPB, 1999, p. 243-244).

sexta-feira, 24 de junho de 2016

BREXIT

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O bom senso britânico voltou a prevalecer na decisão em prol da saída da Inglaterra do seio da Comunidade Européia. O raciocínio é simples: se os 27 integrantes da mencionada Comunidade não têm, cada um deles, a casa em ordem, a soma das irregularidades não pode produzir a ordem geral.

Confrontaram-se, na dramática decisão, duas tendências: a Continental e a Britânica. Duas tradições que se chocaram duramente no passado: lembremos o "Bloco Continental" imaginado pelo imperador Napoleão I, para passar a borracha sobre a Grã Bretanha. Waterloo, no caso, deu a última palavra: quem sofreu a passada da borracha por cima foi Napoleão e o seu projeto megalomaníaco de uma Europa Unida ao redor do seu despotismo.

Os problemas vividos pela União Européia ao longo das últimas décadas, decorrem de que ainda, em muitas cabeças, está presente o modelito de Unidade Continental alicerçada numa força exterior. A periferia da União, bem como países centrais, como é o caso da França, relutaram no saneamento das contas públicas, com as negativas consequências para o bem-estar geral. 

Lembro-me de que, no final dos anos 90, quando terminava o meu pós-doutorado na França, nada menos do que quinze mil empresários franceses cruzaram o Canal da Mancha para se estabelecerem na próspera e sorridente Grã Bretanha, que tinha colocado freio, a partir da era Thatcher, nos desmandos do estatismo. Os quinze mil empreendedores franceses fugiam das garras do guloso fisco do seu país, em busca de melhores condições para fazerem prosperar as suas empresas. Ora, a Grã Bretanha, com a casa em ordem (as contas públicas saneadas e, consequentemente, com menores impostos), era a alternativa desejada.

De lá para cá as coisas não mudaram em termos de controle sobre o gasto público. A França se vê ainda às voltas com o Martínez, o líder sindical bigodudo que lembra o Lula de 79, fazendo greve por tudo quanto é lugar, estimulado pelo crescimento desenfreado dos sindicatos alimentados pelo estatismo... Alguma diferença com o Brasil da era petralha?

Em tempos de turbulência global, dizem os britânicos na sua lição do Brexit, não adiante grandes alardes de alianças transnacionais. O primeiro passo é controlar o gasto público no interior do próprio país. Depois, pode-se pensar em passos mais arrojados como integrar uma grande aliança transnacional.

No caso brasileiro, só conseguiremos despegar para voos mais arrojados, se a operação Lava-Jato terminar a sua ação saneadora, colocando atrás das grades os ladrões da coisa pública e, especialmente, os seus mandantes. Somente assim poderá haver saneamento das contas públicas e a almejada paz social. 

A situação dramática do Rio olímpico está a nos lembrar que bazófia e propaganda nada resolvem. Ou se coloca a casa em ordem estancando de vez a roubalheira generalizada e a má gestão, ou as coisas pioram na área social, a começar pela segurança pública. 

O velho patrimonialismo precisa acabar. E o ponto de partida é prender os larápios que confundiram público com privado e reduziram tudo a uma privada.

quarta-feira, 1 de junho de 2016

A JUSTIÇA E OS DECAÍDOS - SÉRGIO FERNANDO MORO - (Artigo publicado no jornal O ESTADO DE S. PAULO, 31 de Maio de 2016)




Sérgio Fernando Moro (1972), juiz federal.
Tommaso Buscetta é provavelmente o mais notório criminoso que, preso, resolveu colaborar com a Justiça. Um detalhe muitas vezes esquecido é que ele foi preso no Brasil, onde havia se refugiado após mais uma das famosas guerras mafiosas na Sicília. No Brasil, continuou a desenvolver suas atividades criminosas por meio do tráfico de drogas para a Europa. Por seu poder no Novo e no Velho Mundo, era chamado de “o senhor de dois mundos”.
Após sua extradição para a Itália, o célebre magistrado italiano Giovanni Falcone logrou convencê-lo a se tornar um colaborador da Justiça. Suas revelações foram fundamentais para basear, com provas de corroboração, a acusação e a condenação, pela primeira vez, de chefes da Cosa Nostra siciliana. No famoso maxiprocesso, com sentença prolatada em 16/12/1987, 344 mafiosos foram condenados, entre eles membros da cúpula criminosa e o poderoso chefão Salvatore Riina, que, pela violência de seus métodos, ganhou o apelido de “a besta”. Para ilustrar a importância das informações de Tommaso Buscetta, os magistrados italianos admitiram que, até então, nem sequer conheciam o verdadeiro nome da organização criminosa. Chamavam-na de Máfia, enquanto os próprios criminosos a chamavam, entre si, de Cosa Nostra.
Sammy “Bull” Gravano era o braço direito de John Gotti, chefe da família Gambino, uma das que dominavam o crime organizado em Nova York até os anos 80. Gotti foi processado criminalmente diversas vezes, mas sempre foi absolvido, obtendo, em decorrência, o apelido na imprensa de “Don Teflon”, no sentido de que nenhuma acusação “grudava” nele. Mas, por meio de uma escuta ambiental instalada em seu local de negócios e da colaboração de seu braço direito, foi enfim condenado à prisão perpétua nas Cortes federais norte-americanas, o que levou ao desmantelamento do grupo criminoso que comandava.
Mario Chiesa era um político de médio escalão, responsável pela direção de um instituto público e filantrópico em Milão. Foi preso em flagrante em 17/2/1992, por extorsão de um empresário italiano. Cerca de um mês depois, resolveu confessar e colaborar com o Ministério Público Italiano. Sua prisão e colaboração são o ponto de partida da famosa Operação Mãos Limpas, que revelou, progressivamente, a existência de um esquema de corrupção sistêmica que alimentava, em detrimento dos cofres públicos, a riqueza de agentes públicos e políticos e o financiamento criminoso de partidos políticos na Segunda República italiana.
Nenhum dos três indivíduos foi preso ou processado para se obter confissão ou colaboração. Foram presos porque faziam do crime sua profissão. Tommaso Buscetta foi preso pois era um mafioso e traficante. Gravano, um mafioso e homicida. Chiesa, um agente político envolvido num esquema de corrupção sistêmica em que a prática do crime de corrupção ou de extorsão havia se transformado na regra do jogo. Presos na forma da lei, suas colaborações foram essenciais para o desenvolvimento de casos criminais que alteraram histórias de impunidade dos crimes de poderosos nos seus respectivos países.
Pode-se imaginar como a história seria diferente se não tivessem colaborado ou se, mesmo querendo colaborar, tivessem sido impedidos por uma regra legal que proibisse que criminosos presos na forma da lei pudessem confessar seus crimes e colaborar com a Justiça.
É certo que a sua colaboração interessava aos agentes da lei e à sociedade, vitimada por grupos criminosos organizados. Essa é, aliás, a essência da colaboração premiada. Por vezes, só podem servir como testemunhas de crimes os próprios criminosos, então uma técnica de investigação imemorial é utilizar um criminoso contra seus pares. Como já decidiu a Suprema Corte dos EUA, “a sociedade não pode dar-se ao luxo de jogar fora a prova produzida pelos decaídos, ciumentos e dissidentes daqueles que vivem da violação da lei” (On Lee v. US, 1952).
Mas é igualmente certo que os três criminosos não resolveram colaborar com a Justiça por sincero arrependimento. O que os motivou foi uma estratégia de defesa. Compreenderam que a colaboração era o melhor meio de defesa e que, só por ela lograriam obter da Justiça um tratamento menos severo, poupando-os de longos anos de prisão.
A colaboração premiada deve ser vista por essas duas perspectivas. De um lado, é um importante meio de investigação. Doutro, um meio de defesa para criminosos contra os quais a Justiça reuniu provas categóricas.
Preocupa a proposição de projetos de lei que, sem reflexão, buscam proibir que criminosos presos, cautelar ou definitivamente, possam confessar seus crimes e colaborar com a Justiça. A experiência histórica não recomenda essa vedação, salvo em benefício de organizações criminosas. Não há dúvida de que o êxito da Justiça contra elas depende, em muitos casos, da traição entre criminosos, do rompimento da reprovável regra do silêncio. Além disso, parece muito difícil justificar a consistência de vedação da espécie com a garantia da ampla defesa prevista em nossa Constituição e que constitui uma conquista em qualquer Estado de Direito. Solto, pode confessar e colaborar. Preso, quando a necessidade do direito de defesa é ainda maior, não. Nada mais estranho. Acima de tudo, proposições da espécie parecem fundadas em estereótipos equivocados quanto ao que ocorre na prática, pois muitos criminosos, mesmo em liberdade, decidem, como melhor estratégia da defesa, colaborar, não havendo relação necessária entre prisão e colaboração.
Na Operação Lava Jato, considerando os casos já julgados, é possível afirmar que foi identificado um quadro de corrupção sistêmica, em que o pagamento de propina tornou-se regra na relação entre o público e o privado. No contexto, importante aproveitar a oportunidade das revelações e da consequente indignação popular para iniciar um ciclo virtuoso, com aprovação de leis que incrementem a eficiência da Justiça e a transparência e a integridade dos contratos públicos, como as chamadas Dez Medidas contra a Corrupção apresentadas pelo Ministério Público ou outras a serem apresentadas pelo novo governo. Leis que visem a limitar a ação da Justiça ou restringir o direito de defesa, a fim de atender a interesses especiais, não se enquadram nessa categoria.
*Sérgio Fernando Moro é juiz federal