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domingo, 29 de janeiro de 2017

VICENTE FERREIRA DA SILVA - O HOMEM E A OBRA

Vicente Ferreira da Silva (1916-1963)

No ano passado completou-se um século do nascimento de Vicente Ferreira da Silva. Em homenagem ao grande pensador paulista prematuramente falecido em 1963, divulgo o seguinte ensaio, de minha autoria, que já tinha sido publicado na Revista Brasileira de Filosofia (1981) e no Portal Ensayo da Universidade de Georgia (2003), organizado pelo Professor Dr. José Luis Gómez Martínez.
I
ASPECTOS BIO-BIBLIOGRÁFICOS
Vicente Ferreira da Silva nasceu em São Paulo, em 10 de janeiro de 1916 e morreu prematuramente de acidente de automóvel na mesma cidade, em 19 de julho de 1963, aos 47 anos de idade. Formou-se em Direito na Faculdade do Largo de São Francisco, da sua cidade natal, mas nunca exerceu a profissão de advogado, tendo-se dedicado inteiramente à meditação filosófica e à vida acadêmica, atividade que exerceu, aliás, com total desprendimento, através de cursos livres que oferecia no Colégio Livre de Estudos Superiores, que fundou em São Paulo no ano de 1945. Nessa instituição, segundo Antônio Paim, "viria a despertar a vocação filosófica de diversos jovens que mais tarde se destacaram nessa atividade" [Paim, 1999: 453]. No início da sua atividade acadêmica, em 1940, o nosso autor colaborou com o filósofo Willard Quine que visitou a Universidade de São Paulo. Dessa sua colaboração resultou o livro intitulado Elementos de Lógica Matemática, publicado nesse mesmo ano. Em 1949 acompanhou Miguel Reale na fundação do Instituto Brasileiro de Filosofia, centro de estudos que, até o dia de hoje, "congrega pensadores de todas as tendências" [Reale, 1992: 1129].

Vocação filosófica das mais brilhantes no panorama cultural brasileiro, Ferreira da Silva praticou rigorosamente, ao longo de sua vida, o "amor sapientiae". Alheio a preocupações econômicas, fez do seu centro de estudos, bem como da sua presença no Instituto, pólo irradiador da meditação mais rigorosa sobre o mistério do ser  e do homem, ao mesmo tempo que demonstrava grande interesse pelas matemáticas. Eis a forma em que Miguel Reale sintetiza o espírito da sua obra: "Autodidacta, aliou à multiplicidade de leituras filosófico-literárias um gosto marcante pela matemática, pela logística e pela problemática metafísica, o que dá um sentido especial às suas meditações, podendo-se dizer que ele soube, com novos termos, enriquecer a linguagem filosófica brasileira" [Reale, 1992: 1129].

Com o intuito de estimular os estudos no campo da estética (aspecto altamente valorizado na meditação de Ferreira da Silva), o nosso autor organizou a Sociedade Cultural Nova Crítica, juntamente com a sua esposa, a poetisa Dora Ferreira da Silva; o órgão da mencionada Sociedade passou a ser a Revista Diálogo. Inúmeros estudos têm sido feitos ao longo das últimas décadas sobre o pensamento de Vicente Ferreira da Silva, em que se destaca a vertente da meditação mito-poética que se situaria na origem da cultura ocidental, numa perspectiva metafísica assaz semelhante à que empolgou a filosofia de Martin Heidegger. Estudiosos portugueses têm mostrado a proximidade do pensamento ferreiriano com as linhas mestras da meditação lusa, notadamente da corrente que se convencionou denominar de "Filosofia Portuguesa". O espírito desta vertente estaria vivo na tendência que a pensadora paulista Constança Marcondes Cesar chamou de "Escola de São Paulo" e que tem Vicente Ferreira da Silva como seu centro inspirador, junto com Eudoro de Sousa, Agostinho da Silva e Adolpho Crippa.

II 

PERFIL ANTROPOLÓGICO DA MEDITAÇÃO

DE VICENTE FERREIRA DA SILVA


Salientarei nesta apresentação a inspiração heideggeriana que anima a meditação de Ferreira da Silva sobre o homem. Alicerçarei a minha análise  basicamente em cinco ensaios do pensador paulista: A concepção do homem segundo Heidegger (1951), O Andróptero (1948), Utopia e liberdade (1948), Para uma moral lúdica (1949) e Meditação sobre a morte (1948). Levando em consideração que no primeiro dos ensaios mencionados Ferreira da Silva faz um comentário acerca da Carta sobre o Humanismo de Martin Heidegger (1889-1976), acompanharei a análise desse trabalho do pensador paulista com a minha própria leitura do ensaio heideggeriano. Na conclusão desta exposição farei uma avaliação global acerca do pensamento antropológico-filosófico de Ferreira da Silva, indicando o lugar que esse tema ocupa na evolução da sua filosofia. Espero assim contribuir ao estudo de quem já foi considerado "a maior vocação metafísica do Brasil".

1) Inspiração de Ferreira da Silva na meditação de Martin Heidegger

A meditação do pensador paulista sobre o homem é, sem dúvida, de inspiração heideggeriana. No ensaio intitulado A concepção do homem segundo Heidegger [Silva, 1964: I, 256-264], Ferreira da Silva salienta algumas das principais apreciações feitas pelo filósofo alemão a respeito do homem, na sua Carta sobre o Humanismo. Nessa síntese do pensamento heideggeriano encontramos explicitados os principais elementos antropológicos que alicerçam as restantes considerações de Ferreira da Silva sobre o homem.  Heidegger inicia a sua carta, que dirige a Jean Beaufret em 1949,  fazendo uma crítica ao falso cientificismo de que se revestiu a Filosofia. Esse vício consiste na caracterização "do pensar como theoria e a determinação do conhecer como postura teórica", fenômeno que se dá no seio de uma interpretação técnica do pensar. Trata-se, segundo Heidegger, de uma "tentativa racional, visando a salvar também o pensar, dando-lhe ainda uma autonomia em face do agir e operar". A filosofia é, nesse intento, "perseguida pelo temor de perder em prestígio e importância se não for ciência (...). Na interpretação técnica do pensar, é abandonado o ser como elemento do pensar" [Heidegger, 1979:  150].  Heidegger situa-se, nessa crítica à interpretação técnica do pensar, no contexto da análise que Edmund Husserl tinha feito acerca do objetivismo na sua obra A crise das ciências européias e a fenomenologia transcendental  [cf. Husserl, 1962]. Longe de ser o pensar uma função puramente teorizante, Heidegger salienta que este ato se firma a partir do Ser "na medida em que o pensar, apropriado e manifestado pelo ser pertence ao ser" [Heidegger, 1979: 150]. É o próprio ser que, pela sua força, "pelo seu querer, impera com seu poder sobre o pensar e, desta maneira, sobre a essência do homem"; isso significa, frisa Heidegger, que o próprio ser age "sobre a essência do homem (...), sobre sua relação com o ser. Poder algo significa aqui: guardá-lo em sua essência, conservá-lo em seu elemento" [Heidegger, 1979: 151].

O pensar, na dimensão pseudo-científica que o valoriza exclusivamente como tekhne insere-se, frisa Heidegger, "na singular ditadura da opinião pública" que, numa clara manifestação do grau de objetivismo em que caiu a linguagem, "decide previamente o que é compreensível e o que deve ser desprezado como incompreensível". Essa "ditadura da opinião pública" exerce-se através "da mediação das vias de comunicação" às quais se submete a linguagem. Trata-se, a meu ver, do fenômeno que Marcuse tinha tipificado no surgimento do "pensamento unidimensional" e que conduz, segundo Heidegger, ao reinado dos "ismos", que materializam a caricatura da Filosofia como "técnica de explicação pelas últimas causas". O filósofo lembra que a temática de "a gente" em Ser e Tempo expressa esse esvaziamento da linguagem na opinião pública [cf. Heidegger, 1979: 151; Marcuse, 1970]. Essa crise da linguagem, salienta Heidegger, manifesta-se especialmente na metafísica moderna da subjetividade, que se tornou "um instrumento de dominação sobre o ente" [Heidegger, 1979: 152]. Ferreira da Silva expressa este pensamento heideggeriano da seguinte forma: "A totalidade das formulações e doutrinas sobre a natureza última do homem, sobre a humanitas do homem, se desenvolveu a partir da precária base de um profundo esquecimento do Ser. (...) O pensamento filosófico e humanístico não atendia a esta relação e intimidade do homem com as potências instituidoras do ser. O pensamento metafísico pensou o homem a partir da forma do Ente, isto é, a partir de imagens que não eram suficientemente originais e prévias" [Silva, 1964: I, 256].

A crítica a esse vício do pensamento metafísico constitui, no sentir de Ferreira da Silva, "a primeira observação de Heidegger", que se "colige na acentuação de que o pensamento filosófico ocidental, ao pretender determinar a essência do homem, o fez sempre a partir de uma determinada interpretação da Natureza, da História e do Ente em geral". Para superar essa crise ou, em palavras do próprio Heidegger, para encontrar "o caminho para a proximidade do ser", o homem deve "antes aprender a existir no inefável (...). Somente assim será devolvido à palavra o valor de sua essência e o homem será gratificado com a devolução da habitação para residir na verdade do ser". Essa será a base para o ressurgimento do verdadeiro conceito de Humanismo, que consiste, unicamente, nisto: "meditar e cuidar para que o homem seja humano e não desumano, inumano, isto é, situado fora de sua essência". Os humanismos, porém, segundo Heidegger, tanto o marxista quanto o cristão, o greco-romano, o renascentista, ou mesmo o sartreano, "coincidem nisto: que a humanitas  do homo humanus é determinada a partir do ponto de vista de uma interpretação fixa da natureza, da história, do mundo, do fundamento do mundo, e isto significa, desde o ponto de vista do ente em sua totalidade" [Heidegger, 1979: 152].

Indagando pelo fundamento dessa visão parcelada que afeta aos diferentes humanismos, Heidegger frisa que "todo humanismo funda-se ou numa Metafísica ou ele mesmo se postula como fundamento de uma tal" [Heidegger, 1979: 153]. É portanto de teor metafísico toda interpretação da essência do homem que pressuponha a compreensão do ente, mesmo que não leve explicitamente em consideração a questão da verdade do ser. Heidegger refere-se particularmente ao humanismo romano, cuja interpretação da essência do homem como animal rationale é condicionada pela Metafísica. Referindo-se a esta apreciação de Heidegger, Ferreira da Silva afirma que "o destino da Metafísica é o de não conseguir pensar o homem em sua verdadeira proveniência" [Silva, 1964: I, 257], pois a sua essência transcende as determinações pressupostas por aquela. Tentando concretizar as razões que invalidam a Metafísica, Heidegger frisa que ela "realmente representa o ente em seu ser e pensa assim o ser do ente. Mas ela não pensa a diferença entre ambos (...). A Metafísica não levanta a questão da verdade do ser mesmo. Por isso ela também jamais questiona o modo como a essência do homem pertence à verdade do ser" [Heidegger, 1979: 154]. Referindo-se à afirmação heideggeriana de que "a Metafísica pensa o homem a partir da animalitas; ela não pensa em direção de sua humanitas", Ferreira da Silva expressa assim, por sua vez, essa parcialidade do pensamento metafísico: "Esta incapacidade da Metafísica radica na impossibilidade do pensamento metafísico para pensar a diferença que vai entre o Ser e o Ente. A Metafísica propende sempre a reduzir e a representar o Ser pelo Ente, a substituir a abertura do Ser pelo revelado em tal abertura. A Metafísica vê o Ente e o pensa, mas em pleno esquecimento das potências instituidoras da manifestação do manifestável" [Silva, 1964: I, 257].

A Metafísica, frisa Heidegger, esqueceu o dado fundamental do homem: a sua abertura para o ser. Ela encontra-se fechada "para o simples dado essencial de que o homem somente desdobra seu ser em sua essência enquanto recebe o apelo do ser (...). Somente na intimidade deste apelo, já tem ele encontrado sempre aquilo em que mora sua essência" [Heidegger, 1979: 154]. Ferreira da Silva salienta, de forma semelhante, esse esquecimento da Metafísica, que se baseia no fato de ela fazer descer o homem ao domínio exclusivo do ente que é, entretanto, "um momento essencial da própria estrutura existencial do homem" [Silva, 1964: I, 258]. Se a essência do homem foi tergiversada no seio do pensamento metafísico, cumpre aprofundar no sentido do que essa essência é. Heidegger frisa que a essência do homem, ser-aí, reside na sua ec-sistência que descreve como "o estar postado na clareira do ser" e que explica assim: "O homem desdobra-se (...) em seu ser (west) que ele é e , isto é, a clareira do ser. Este ser do aí, e somente ele, possui o traço fundamental da ec-sistência, isto significa, o traço fundamental da in-sistência ec-stática na verdade do ser.  A essência ec-stática do homem reside em sua ec-sistência, que permanece distinta da existentia pensada metafísicamente" [Heidegger, 1979: 155]. Ferreira da Silva, por sua vez, salienta que "o homem é na forma da ek-sistência e este é um modo unicamente humano de ser (...). Não se pode captar o que é o homem, quer colecionando suas qualidades ônticas, quer apelando para um poder interno ou subjetivo; o modo de aproximação da humanitas do homem consiste na visualização da sua dimensão ek-sistencial e transcendente". Ora, essa dimensão consiste no "habitar ek-stático na proximidade do Ser", cuja apreensão, frisa Ferreira da Silva, "cumpre-se na superação e transcendência de todo o Ente, no relacionar-se com essa Abertura que condiciona todo o ingresso no mundo (Welteingang)" [Silva, 1964: I, 259].

O filósofo paulista sintetiza assim as características do ser na concepção heideggeriana, explicando as conseqüências que se derivam no campo da compreensão filosófica do homem e das possibilidades ek-státicas da sua liberdade: "O Ser é, pois, em sua essência, abertura, desvelamento, descobertura, iluminação projetante, fonte de inteligibilidade. Mas, por outro lado, desvelamento, transcendência significam esboço de um mundo, Weltenwurf, descobertura do Ente. O Ser se dá continuamente como esboço de um mundo, como poder instituidor das possibilidades históricas do homem. Esse transcender projetante do Ser manifesta-se como um poder livre, como uma liberdade que funda e institui o espaço de manifestação do Ente. Não se deve, entretanto, confundir essa liberdade individual do eu e do tu, em seu jogo dialético condicionado. É daquela liberdade original que o eu e o tu recebem o espaço de seu movimento optativo. A dimensão do Ser é justamente a dimensão desse poder livre e projetante de um mundo, dimensão onde descobrimos uma liberdade mais original que a liberdade do eu singular" [Silva, 1964:  I, 259]. A abertura ao Ser é, assim, o pano de fundo sobre o qual se desenham as possibilidades históricas da liberdade humana. Ferreira da Silva faz ênfase nesse aspecto fundante e primordial da ek-sistência aberta ao Ser. Em virtude dela se constitui a essência verdadeiramente humana. A respeito, frisa o nosso autor: "O homem é sujeito de um Destino instituidor de sua própria realidade histórica, em relação ao qual pode se initimisar. O homem habita um domínio onde, o que está em jogo é algo que supera o homem, mas que o superando, lança-o em sua situação histórica própria" [Silva, 1964: I, 259]. Essa é a forma de interpretar validamente a afirmação heideggeriana de que "o homem é o vizinho do ser" [Heidegger, 1979: 164], ou de que "o homem habita, na medida em que é homem, na proximidade de Deus" [Heidegger, 1979: 170].

Heidegger salienta, na parte central da sua Carta sobre o humanismo as características de que se reveste o relacionamento entre o Ser e a ec-sistência.  Em primeiro lugar, esta pressupõe que o homem esteja exposto à verdade do Ser. Frisa Heidegger a respeito: "Ec-sistência nomeia a determinação daquilo que o homem é no destino da verdade (...). A frase: o homem ec-siste não responde à pergunta se o homem efetivamente é ou não, mas responde à questão da essência do homem" [Heidegger, 1979: 156]. Ferreira da Silva enfatiza esse aspecto da ec-sistência,frisando que "na determinação da essência  ek-sistencial do homem, acontece que não é o homem, ônticamente entendido, o principal,  mas sim a natureza histórica do homem pensada a partir da verdade desveladora do Ser. Nesta ordem de idéias, é subtraída ao homem qualquer iniciativa ou autodeterminação fundamental, sendo o homem lançado e abandonado em sua situação histórica particular, pelo movimento próprio da liberdade transcendente. O homem é convocado ao núcleo de suas possibilidades históricas próprias pelas potências ek-stático-projetantes do Ser" [Silva, 1964: I, 260]. Desta forma, no sentir do filósofo paulista, o pensamento heideggeriano tenta superar todo antropocentrismo.

Em segundo lugar, Heidegger se pergunta como o ser se dirige ao homem. Isso se entende se compreendermos "que o homem é enquanto ec-siste". Podemos afirmar que "a ec-sistência do homem é sua substância", ou, em outros termos, que "o modo como o homem se apresenta em sua própria essência ao ser, é a ec-stática insistência na verdade do ser". Os humanismos, frisa Heidegger, não conseguiram expressar essa dimensão da dignidade humana. Porisso "pensa-se contra o humanismo" [Heidegger, 1979: 157]. No seu ensaio intitulado O ocaso do pensamento humanístico, Ferreira da Silva amplia essa consideração heideggeriana sobre a influência dos humanismos diante da dignidade ek-stática do homem, inserindo neles até a própria fenomenologia. Eis as suas palavras a respeito: "Entretanto poder-se-ia indagar se o tipo de ser da consciência humana ou do ego cogito, eleito pela doutrina husserliana e por tantas outras filosofias de índole humanística como princípio supremo do pensar, não se reduziria a uma meditação mais radical, como uma forma emergente na sucessão das epifanias do ser. Poder-se-ia propor ainda a questão de saber se seria possível remontar  a uma abertura na qual, algo como a consciência subjetivo-transcendental, ocorreu, e não só ocorreu, como foi efetivamente vivida" [Silva, 1964: II, 204-205].

Em terceiro lugar, Heidegger frisa que, em decorrência da supremacia do ser sobre a ec-sistência, deve-se excluir qualquer forma de manipulação do ser por parte do homem. Para ele, "o homem é o pastor do Ser". O homem não decide quando os entes penetram na clareira do Ser. Enquanto ec-sistente, deve ter cuidado, ou seja, deve "vigiar e proteger a verdade do Ser" [Heidegger, 1979: 158]. Ferreira da Silva, por sua vez, explica esse caráter de profundo respeito que deve guiar a atitude ec-stática em relação ao Ser, nos seguintes termos: "O poder ser próprio do homem é, pois, um poder arrojado, uma atividade que se exercita dentro de uma direção e de diretivas já prescritas. O homem, portanto, não é o senhor do Ente (der Herr des Seienden), mas o pastor do Ser (der Hirt des Seins) isto é,  aquele Ente que deve cuidar para que seja preservado o elemento do Ser. Este cuidar se dá como transcendência em relação a todo o dado e como relação ek-stática em direção à verdade do Ser" [Silva, 1964: I, 260-261].

Em quarto lugar, o filósofo alemão frisa que o Ser não se revela intuitivamente ao homem como hipostasiado em determinada coisa. A respeito, frisa Heidegger: "O Ser é mais amplo que todo ente e é contudo mais próximo do homem que qualquer ente". O homem atém-se primeiro ao ente. "Quando, porém, o pensar representa o ente enquanto ente, refere-se, certamente, ao Ser (...). A questão do Ser permanece sempre a questão do ente". Essa situação de desvelamento do Ser através do ente (e do ente representado pelo pensar enquanto ente), é responsável pela ambigüidade da metafísica mas, ao mesmo tempo,  é a fonte da sua riqueza inesgotável. A verdade do Ser, bem como a clareira mesma, permanece oculta para a metafísica. Mas não é alheia a ela. É, poderiamos dizer, a condição de possibilidade dela. A respeito, frisa Heidegger: "A clareira mesma (...) é o Ser. Ela somente garante no seio do destino ontológico da Metafísica, a perspectiva a partir da qual as coisas que se apresentam afetam o homem que lhes vem ao encontro. Desta maneira o próprio homem pode apenas atingir o Ser (...)  na percepção. (...) Somente a perspectiva atrai a visão para si e a ela se entrega, quando o perceber se transformou no propor-diante-de-si, na perceptio da res cogitans como subjectum da certitudo" [Heidegger, 1979: 158]. Essa questão da plenitude do Ser e da complexidade da sua revelação  através dos entes, é retomada por Ferreira da Silva sob o aspecto da essência litigiosa do Ser, que o pensador paulista concebe nestes termos: "O acontecimento da verdade, como traçado ou projeto do ente é, ao mesmo tempo,  revelação e ocultação, e isto em sentido dinâmico, polêmico e histórico. Às coisas e possibilidades que surgem no horizonte do manifestado, correspondem outras que sucumbem e desaparecem, e isto não por pacífica sucessão, mas como trágica e extenuante luta. A posição do ente se dá como luta; o Ser é, em sua essência, litigioso (streitige) (...). A essência da verdade, isto é, o desvelamento, é dominada por uma recusa. Esta recusa não é, entretanto, uma falta ou privação, como se fosse a verdade um desvelamento total que pudesse eliminar todo o velado" [Silva, 1964: I, 267].

Em quinto lugar, Heidegger afirma que o relacionamento entre a ec-sistência e o Ser pode explicitar-se à luz da temática do ser-no-mundo, que não deve interpretar-se do ponto de vista vulgar - como se o homem fosse simplesmente um ser mundano, ou mesmo como se mundano se contrapusesse a espiritual. A expressão ser-no-mundo significa fundamentalmente "a abertura do Ser. O homem é homem enquanto é ec-sistente. Ele está postado, num processo de ultrapassagem, na abertura do Ser, que é o modo como o próprio ser é; este jogou a essência do homem, como um lance, no cuidado de si. Jogado desta maneira o homem está postado na abertura do Ser. Mundo é a clareira do Ser na qual o homem penetrou a partir da condição de ser-jogado de sua essência. O ser-no-mundo nomeia a essência da ec-sistência, com vistas à dimensão iluminada, desde a qual desdobra seu ser o ec da ec-sistência. Pensando a partir da ec-sistênciamundo é, justamente, de certa maneira, o outro lado no seio da e para a ec-sistência. O homem jamais é primeiramente do lado de cá do mundo como um sujeito, pensa-se este como eu u como nós (...). O homem primeiro é, em sua essência, ec-sistente na abertura do Ser, cujo (espaço) aberto ilumina o entre, em cujo seio pode ser uma relação de sujeito e objeto" [Heidegger, 1979: 167-168]. No seu ensaio intitulado O homem e sua proveniência, Ferreira da Silva aprofunda no sentido não mundano da expressão heideggeriana ser no mundo, salientando que o termo Mundo não remete a uma dimensão antropocêntrica, mas é a expressão da clareira do Ser, na qual o homem se situou graças à sua condição de ser-jogado. Eis as palavras do pensador paulista a respeito: "Sabemos como o ente intramundano só se revela a partir de um sistema de possibilidades inerentes à existência. Estas possibilidades poderiam ser compreendidas como projetadas pelo homem, sendo o próprio homem, neste caso, um prius em relação ao aparecimento do ente intramundano. Porém, a perspectiva em que nos colocamos, procurando incluir o homem dentro do círculo de um projetar instituidor, atesta-nos que aquela interpretação antropocêntrica é inexata. A abertura das possibilidades não diz respeito unicamente à esfera do mundo circundante, mas incide na própria estruturação e constituição do homem. Neste sentido devemos compreender a afirmação de Heidegger de que ao traçar o mundo, o homem se vê traçado no interior do mundo e aí abandonado. O desvelamento do horizonte mundanal é simultâneo ao desvelamento do próprio homem (...). Se o transcender instituidor das possibilidades abre campo para a realização histórica, disto resulta que estamos diante de uma área metahistórica de decisões que envolve e condiciona todas as vicissitudes humanas. É o que afirma Heidegger em diversas passagens da Carta sobre o humanismo" [Silva, 1964: II, 132].

Em sexto lugar, Heidegger refere-se à manifestação da relação entre Ser e ec-sistência através da linguagem que, longe de ser um flatus vocis, é essencialmente "a casa do Ser manifestada e apropriada pelo Ser e por ele disposta". Porisso, frisa o filósofo alemão,  deve-se pensar a essência da linguagem a partir da correspondência desta ao Ser enquanto tal correspondência, ou seja, "como habitação da essência do homem". Isso significa que, na fundamentação da linguagem, "não é o homem o essencial, mas o Ser enquanto dimensão do elemento ec-stático da ec-sistência" [Heidegger, 1979: 159]. Na parte final da Carta sobre o humanismo, Heidegger frisa que a poesia "se confronta com as mesmas questões e, da mesma maneira, com o pensar. Mas ainda vale a pouco meditada palavra de Aristóteles em sua Poética: que o poematizar é mais verdadeiro que o investigar o ente" [Heidegger, 1979: 174]. Ao mesmo tempo, Heidegger lembra, repetindo as palavras de Hölderlin, que a linguagem "é o mais perigoso dos bens", porquanto na expressão do pensamento através das palavras, esconde-se o risco de despoetizar a linguagem e torná-la lógica [cf. Heidegger, 1979: 174-175]. Ferreira da Silva adere ao conceito heideggeriano de linguagem, que a pensa não na sua fria formalidade, mas na dimensão poética que a constitui em casa do Ser. O pensador paulista dedica a este tema as últimas páginas do seu ensaio A concepção do homem segundo Heidegger. Eis as suas palavras a respeito: "A poesia é o dizer da descobertura do Ente. No dizer poético põe-se em obra a verdade projetante do Ser. Eis porque podemos dizer que a obra de arte, cuja essência reside na poesia, funda e institui o mundo, trazendo a um povo o conceito de sua própria realidade. Assim pois, ela não é  - como diz Heidegger - um simples ornamento que acompanharia a realidade humana, nem um mero entusiasmo passageiro, como também não é uma simples exaltação ou um passatempo. A poesia é o fundamento que suporta a História" [Silva, 1964: I, 261]. Ferreira da Silva termina o seu ensaio fazendo as seguintes considerações em relação à Poesia como linguagem primordial: "a) A interpretação falaciosa da essência da linguagem deve-se ao predomínio da metafísica da subjetividade. b) Devemos pensar a palavra sob um ponto de vista revolucionário: o homem passa a ser interior à palavra, instituído em sua configuração histórica particular pela abertura projetante do dizer poético. c) A palavra (poética) é o jato de luz que franqueia um mundo à humanidade histórica. d) A linguagem, na acepção primitiva e original, é portanto um dizer do Ser, a forma em que o Ser continuamente se põe em obra" [Silva, 1964: I, 262-263].

2) O homem, irredutível ao geograficamente dado, graças à vivência do mundo eidético

No seu breve ensaio intitulado O Andróptero, o nosso autor formula uma concepção não determinística do homem, a partir da dimensão de abertura ao Ser, típica da humanitas do ser humano.  Os homens somos vítimas, frisa o pensador paulista, do provincianismo geográfico que tinha sido caracterizado por Platão no seu diálogo Fédon. Nele, escreve Ferreira da Silva, "depois de afirmar que esta terra não corresponde à imagem que dela fazem os que costumam relatar descrições de sua superfície, Platão nos diz ser a terra incomensuravelmente grande, possuindo uma infinidade de lugares maravilhosos que desconhecemos por habitarmos entre Farsis e as Colunas de Hércules. Fechados nesse exíguo círculo, entre vales e escarpas confinantes, não temos muitas vezes sequer o pressentimento das paragens divinas que nos envolvem, dessa terra pura que domina a nossa terra. Tendo fixado nossa residência neste solo pedregoso e estéril, aqui vivemos disseminados pelas praias e costas, como formigas e rãs em redor de um pântano. Este provincianismo geográfico desastroso e fatal, que se nos adere, termina por nos cegar, e deixamos então de perceber que a terra que pisamos, estas pedras e todos os lugares que habitamos, estão inteiramente corrompidos e arruinados como aquilo que jaze no mar o está, pela acritude dos sais" [Silva, 1964: I, 17]. A ilusão, frisa o pensador paulista, é a arma que empregamos para nos sentirmos senhores das alturas e apagar, no seio da nossa consciência, todos os sintomas de sujeição e abatimento que produz o provincianismo geográfico. Ferreira da Silva escreve a respeito: "Escapamos ao nosso cativeiro pelo expediente da má-fé e falsificação" [Silva, 1964: I, 18]. Platão, num outro diálogo, Fedro, segundo Ferreira da Silva, caracterizou muito bem a situação da alma falsamente liberada pela ilusão: "Quando a alma perde suas asas, roda pelos espaços infinitos até aderir a alguma coisa sólida, fixando aí sua morada. Essa coisa sólida é constituída pelo sistema de nossos limites, de tudo quanto é externo, de todo o domínio da materialidade" [Silva, 1964: I, 17-18].

A doutrina platônica das idéias aparece, nesse contexto de determinismo e opressão, como uma filosofia salvadora. "A virtude das asas  - afirmava Platão -  consiste em levar o que é pesado para as regiões superiores" [apud Silva, 1964: I,  19]. Porém, frisa Ferreira da Silva, é preciso interpretar corretamente as idéias, não como uma cópia exaurida da realidade sensível, pois perderiam assim toda a sua originalidade, e já não seriam Ser original ou matrizes absolutas. O nosso pensador caracteriza assim a verdadeira essência daquelas: "A Idéia é justamente o contrário de um conceito, que está sempre aquém do sensível, tendo virtudes e propriedades completamente distintas. Enquanto os conceitos nos encerram no determinado e no finito, pondo-nos em relação com um dado insuperável, as Idéias nos lançam num processo infinito de perfeição e de plenitude, fazendo-nos ultrapassar todo o imediato" [Silva, 1964: I, 19]. Assim, o mundo eidético, "esse Eros cosmogônico que mantém o universo em existência", exerce um papel distensivo e libertador ao permitir-nos a evasão do puramente fático, bem como do confinamento a que nos reduzem os sentidos e os conceitos. Em que pese o fato de serem "realizadas, imóveis e estáticas", as Idéias são "o princípio de todo o movimento no mundo sensível, estando este em constante radiação para esses paradigmas insuperáveis do Ser"  [Silva, 1964: I, 20].

Só existe, para Ferreira da Silva,  um caminho que conduz à verdadeira libertação: a abertura para o pensamento eidético, que é a abertura para o Ser e que exige de nós um duro sacrifício, a saber,  "o da entrega a uma perfeição que não solicita o nosso consentimento para a sua constituição, exigindo a genuflexão da nossa vontade (...). Quando entramos em cena, o drama do ser já se cumpriu, pois está realizado desde todo o sempre e o nosso único papel seria o de reconhecer, ou não, a legitimidade de sua soberania" [Silva, 1964: I, 20]. Fora dessa perspectiva de abertura ao plano eidético, tudo é "mímesis, cópia, mera reprodução".  Nesse contexto de inautenticidade, o real se nos apresenta "como pensamento pensado e não como pensamento pensante". Caímos então numa posição metafísica a cujas dificuldades não conseguiu escapar o próprio Platão, "quando este se defronta, na República, com o problema de explicar por que devem voltar a este mundo, para desempenhar o seu papel de mentores e governantes, aqueles que fixaram sua morada no templo das Idéias. Compreende-se, pois, perfeitamente a pergunta de Glauco a Sócrates: Por que condená-los a uma vida miserável, se eles podem desfrutar de uma vida mais feliz?" O filósofo paulista conclui o seu ensaio O Andróptero com esta pergunta, que traz até nós a preocupação do interlocutor de Sócrates no diálogo platônico: "Se a felicidade e o objetivo da vida estão além da história, se o tempo e o curso das coisas humanas não constituem um fator substancial da realidade, por que exigir de quem se elevou a uma ordem superior de existência que se ocupe e se responsabilize pela gestão das sombras?" [Silva, 1964: I, 21].

3) O homem, irredutível às utopias, graças à fundação poética da sua essência

Ferreira da Silva reconhece, no seu ensaio intitulado Utopia e Liberdade, duas formas de utopismo que afetam ao homem: a normal, e a construtível. A primeira faz ênfase no fato de existir uma norma canônica de ser humano, "um regime definitivo em que o homem entraria em plena congruência com o seu desenho essencial" [Silva, 1964: I, 61]. Nesse utopismo deitam raízes as idéias de uma idade de ouro ou de uma nova Atlântida. A segunda forma de utopismo baseia-se no reconhecimento de que "o homem em sua natureza é um ser construtível, tanto do ponto de vista interior, como do ponto de vista exterior, e que portanto pode ser conduzido ou reconduzido à sua forma normal". O filósofo paulista salienta que o homem, nas utopias, é tomado como um objeto destituído de qualquer dialética interna. Trata-se, sem dúvida, de um vulgar determinismo, cuja essência é assim explicada pelo nosso autor: "Se considerássemos o homem como um simples sistema de necessidades ou como uma ordem de apetites psicossomáticos, seríamos forçados a admitir sempre uma proporção direta entre o sentimendo de poder interno, de plenitude e satisfação humana, e o aumento das condições e dos meios externos de satisfação desses apetites". Contudo, frisa Ferreira da Silva, a reflexão patenteia que o homem é um puro imprevisível, que não pode ser construído ou programado por um conjunto de técnicas sofisticadas em poder do Estado.  A propósito, afirma: "A mais sumária reflexão nos mostra, entretanto, quão negligente à realidade é essa pretensa proporção que comanda esta forma de pensamento: num certo aspecto, o homem é um puro imprevisível, sendo a sua coerência de ordem mais profunda do que entende o utopismo. A utopia social implica, evidentemente, uma certa ordem no suceder das coisas, exige que a um mais corresponda sempre um mais e a um menos sempre um menos, pois não teria sentido trabalhar numa certa direção se não estivesse garantido o resultado. A própria idéia de construtividade no sentido utópico, que envolve todo um conjunto de técnicas que facultaria a um poder estatal a construção de um determinado tipo de sociedade e, ipso facto, de uma certa figura antropológica, viria a perder seu sentido se puséssemos em relevo esta rebeldia metafísica da consciência humana" [Silva, 1964: I, 62].

O utopismo peca justamente por desconhecer esta rebeldia metafísica essencial ao homem, ao tentar quantificá-lo em resultados mensuráveis. Ferreira da Silva refere-se a esse aspecto nestes termos: "O utopismo está baseado numa versão muito superficial do que poderíamos denominar a lógica existencial do homem, a sua coerência interna e não podemos fugir à impressão de que lida com o homem, como se este fosse uma quantidade fixa, um termo que se manteria constante em todas as suas operações. Sob um outro ângulo, o utopismo não considera a variação histórica dos desiderata, impulsos e idéias humanas e toda a fluente e incoercível realidade da história". Ferreira da Silva assinala um aspecto muito importante dessa rebeldia metafísica do homem: a liberdade. Aí deita raízes a distinção profunda entre o homem e as coisas que podem ser programadas: "A escolha, no homem, é sempre seleção, alternativa, privação, o que o distingue essencialmente de todas as coisas que podem passar por diversas fases de elaboração, permanecendo sempre aptas a serem conduzidas à perfeição previamente estabelecida. Ao optar, o homem cria condições novas e particulares, novas determinações do seu ser, que passam a limitar e cercear as novas opções, apresentando à sua vida um conjunto circunstancial sempre diferente". O filósofo paulista exprime a absoluta  originalidade humana, em palavras que lembram o pensamento de Heidegger: "O homem assemelha-se a um viandante que, ao se perder numa floresta, fosse destruindo todas as pontes e passagens que o ligavam ao ponto de partida, não lhe restando, portanto,  outro recurso senão marchar para a frente" [Silva, 1964: I, 63].

O utopismo, pelo contrário, frisa Ferreira da Silva, pressupõe que o projeto humano pode ser decomposto em etapas quantificáveis, numa alusão às teorias desenvolvimentistas que apregoam o planejamento da sociedade e do homem, do estritamente econômico e material e do propriamente humano. A respeito, o nosso pensador escreve: "O pensamento utópico, entretanto, julga que o problema humano pode ser decomposto em fatores particulares, podendo uma parte esperar a solução da outra e afirmando ipso facto que a sociedade se pode dedicar primeiro a salvar os seus problemas materiais mais urgentes para depois enfrentar tarefas de mais alto significado. Esta crença vemo-la despontar quando ouvimos dizer que tal ou qual país está sacrificando uma ou duas gerações na construção de uma infra-estrutura incomovível que lhe possibilite depois um apogeu espiritual" [Silva, 1964: I, 64]. Essa falsa suposição do utopismo inspira-se numa visão simplista do homem, que pretende ser a pessoa a mesma, do ângulo espiritual, ainda que manipulada extrinsecamente pelos processos produtivos e de reforma social. O filósofo paulista levanta duas objeções contra essa pretensão que, mesmo que não a identifique explicitamente, no Brasil materializou-se nas várias tendências determinísticas que, como o positivismo, inspiraram em boa medida as idéias desenvolvimentistas postas em marcha nas últimas décadas do século XX. A propósito, Vicente Ferreira da Silva escreve: "Porém, uma vez criada essa ordem econômica perfeita, estaria ainda o homem na mesma disposição em relação aos seus antigos ideais? Permaneceria intacta a sua fé através desses períodos de transformações unilaterais? Estas seriam duas das objeções possíveis ao dogma da construtibilidade parcelada do homem, que se inspira evidentemente numa apreensão objetivante e desmerecedora do homem. Um pequeno número de idéias simplistas e ingênuas orientam este modo de pensamento. Conhecidas as cadeias causais próprias dessa coisa que é o homem, poderíamos então submetê-lo a uma manipulação racional e científica (métodos pedagógicos, higiênicos, biológicos, eugênicos, reflexológicos, etc.) em analogia com os processos usados na criação de animais domésticos" [Silva, 1964: I, 64].

Ferreira da Silva salienta que a afirmação da homogeneidade absoluta do real é a premissa básica da construtibilidade utópica. A respeito, frisa: "Uma premissa se esconde sob a crença da construtibilidade utópica do homem: é a afirmação da homogeneidade absoluta do real. O real se poria como uma extensão homogênea de entidades físicas e naturais que absorveriam em si a totalidade do conhecido. Nenhuma negatividade interna conturbaria a organização dessa massa inerte. Uma vez conhecido o determinismo intrínseco do real, poderíamos afeiçoa-lo ao nosso gosto, dando-lhe a forma mais conveniente ao seu funcionamento natural, aos objetivos postos". A visão utópica da realidade teve uma origem filosófica: a República platônica. Em relação a este ponto, o nosso autor escreve: "Platão consagrou definitivamente a crença de que o homem tem uma medida a cumprir em todos os seus atos e de que o ideal de uma vida justa consiste na participação de um modelo essencial. Esta República ideal de Platão não seria uma invenção arbitrária dos legisladores, nem uma imposição de uma elite de força, mas sim um teorema da razão, uma exigência da natureza inteligível do homem" [Silva, 1964: I, 64-65]. Contudo, apesar desse caráter puramente teorético que tipifica a República platônica, o seu utopismo não pode se justificar sem a materialização de um regime universalmente válido, "que polarize todos os espíritos numa mesma conexão racional e que imponha uma mesma meta a todos os esforços". A utopia pode-se situar no passado, como um paraíso perdido, ou num futuro longínquo, como um regime ideal a ser atingido. Porém, frisa o filósofo paulista, "é a utopia sempre a mesma representação de um regime idealmente necessário dos homens e das coisas, a equação da vida com um código eterno da natureza. Um tal sistema, pelo seu próprio caráter, faz tabula rasa do tempo, pois é a fórmula política de todos os tempos. É o próprio testemunho da História que demonstra o caráter sofístico desta carta política ideal e utópica, dessa legislação universal superior aos tempos e aos lugares" [Silva, 1964: I, 65].

O autor sintetiza assim a problemática debatida por ele nas páginas do seu ensaio Utopia e liberdade: "O que está em jogo aqui é, evidentemente, uma questão de ordem metafísica, a saber: se o homem tem uma medida invariável através dos tempos, um modelo essencial, ou se pelo contrário o homem é o fruto de seu fazer histórico, de sua liberdade e inventividade fundamentais". E salienta, para terminar, a sua concepção de inspiração heideggeriana em relação à caraterística ontológica fundante do homem: "Parece-nos que o mais íntimo do homem consiste justamente nessa fundamentação poética de sua essência, nessa autoprojeção de sua fisionomia humana; e assim não se pode reger por sistema de fins dados de uma vez para sempre. Este regime definitivo da utopia nada mais é do que uma ilusão constante do espírito, propenso a dar valor permanente aos tipos de conduta e aos valores históricos sempre contingentes e gratuitos" [Silva, 1964: I, 65].

4) A moral lúdica, na superação do mito do progresso indefinido

A crise do homem contemporâneo é caracterizada por Ferreira da Silva, no seu ensaio intitulado Para uma moral lúdica, da seguinte forma: "um veneno insidioso foi se infiltrando lentamente no corpo da sociedade atual, um veneno estranho e invisível, cujos sintomas, tornando-se cada vez mais nítidos, incapacitaram o homem para as suas mais autênticas realizações. Uma atmosfera de constrangimento e de frustração circunscreve o campo da consciência e por todos os lados a expectativa do que está por vir tinge de cores carregadas as perspectivas vitais" [Silva, 1964: I, 137]. Esse veneno e essa atmosfera de constrangimento estão identificados, a partir do século XIX, com o mito do progresso indefinido, que degredou a transcendência numa transdescendência, ofuscando o propriamente humano. A respeito, o nosso pensador escreve: "O mito do progresso contínuo (estabeleceu-se) invertendo a ordem dos meios e dos fins, numa caça exaustiva de recursos que nunca desembocavam numa promoção da vida por si mesma. A transcendência original do viver transmudou-se numa transdescendência, isto é, num aprofundamento material cada vez mais acentuado, toda ação passando a ser interpretada unicamente como ação transitiva, utilitária ou econômica, como transformação das coisas e do mundo, mas perdendo-se de vista o escopo de todo o movimento. A ordem sem fim dos meios, o mal infinito dos instrumentos ofuscou a alma e, ato fundamental, o exercício ético das virtudes propriamente humanas" [Silva, 1964: I, 137-138].

O conhecimento operacional, frisa o nosso autor, é uma "visão subsidiária e não teoria filosófica total". Por pretender sê-lo, tornou-se conhecer monstruoso, repetindo aqui o termo cunhado por Kierkegaard. E afirma a seguir: "O que negamos é que esse conhecimento operacional, visão subsidiária e não teoria filosófica total, possa nos instruir no tocante à forma última de nossa vida" [Silva, 1964: I, 138-139]. Na hipertrofia da atividade produtiva do homem atual, a sociedade perdeu o controle dos mecanismos que pôs em movimento. O efeito mais grave dessa hipertrofia, consiste no fato de que os colossos nacionais da técnica encheram o coração do homem de mais apreensões e temores. A solução adequada para esse conflito consiste na modificação simultânea do homem e de suas condições naturais de vida, com ênfase numa inflexão do comportamento moral. Essa será a única forma de superar o caráter para, absolutamente utilitário, da ação moderna, que conduz a uma transitividade insubstancial. Nesse esforço de reivindicação do autenticamente humano, colabora conosco a noção de espírito do cristianismo, que nos capacita para valorizar as coisas em si mesmas. A propósito, afirma Ferreira da Silva: "Para Aristóteles, que vivia no âmbito do intelectualismo grego, somente a contemplação e a filosofia respondiam a tais exigências. Nós, entretanto, educados numa tradição cristã, não necessitamos limitar às virtudes dianoéticas este poder de salvação, pois a nossa noção de espírito é muito mais ampla. O amor, as livres atividades criadoras, são também coisas que se buscam por si mesmas" [Silva, 1964: I, 141]. Encontramos neste aspecto da meditação ferreiriana uma inovação em relação à perspectiva heideggeriana que, na Carta sobre o Humanismo ao menos, enxerga o fenômeno cristão simplesmente como mais um humanismo que limita as livres atividades criadoras do homem.

O nosso autor salienta o valor do jogo como símbolo da conduta ética que dá valor às coisas em si mesmas. A respeito, escreve Ferreira da Silva: "O objetivo do jogo é o jogo, é a ação da ação, o ato do ato. Como símbolo de uma conduta que encontra o deleite no completo, a atividade lúdica é o mais próximo paradigma de um sentido da felicidade que o homem moderno perdeu quase inteiramente". O nosso autor termina o seu ensaio Para uma moral lúdica, destacando o que considera a única seriedade que vale a pena. Eis as suas palavras a respeito: "Varrer da nossa consciência o inessencial, o que não se relaciona com a ação que se busca por si mesma, votando à sátira, à ironia e ao escárnio todos os falsos ídolos. Só há uma seriedade séria; mas esta não é lúgubre e taciturna, crispada e sofredora, mas sim vivificante, generosa e criadora" [Silva, 1964: I, 141].

5) A morte como sucesso que transcende a pura fenomenalidade

O filósofo paulista considera que o silêncio que traduz a inoperância da nossa lógica, é a reação mais adequada perante a morte. A respeito, escreve no seu ensaio intitulado Meditação sobre a morte: "A conseqüência mais própria do evento da morte é compelir-nos ao silêncio, cortando a palavra, pois sentimos anulada a nossa lógica e ultrapassado o mundo de significação que fundamentam os nossos juízos e conceitos. As palavras desmaiam em sons, pois o resto é silêncio" [Silva, 1964: I, 23]. Também desaparecem, perante a morte, as diferenças entre os homens. Diante dela, frisa o nosso autor, "não existem reis ou mendigos do conhecimento e todos submergem nas trevas finais na mesma expectativa desarmada e ansiosa". A morte é, assim, uma situação limite, porquanto é a barreira que se ergue perante a nossa liberdade. Ferreira da Silva enfatiza a dimensão que poderíamos chamar de transcendente da morte, como acontecimento que supera a pura fenomenalidade perceptiva. É o término de um vínculo inter-subjetivo entre duas almas; a solidão e a ausência daí decorrentes são os fatos que o homem procura explicar quando se lança à reflexão sobre a morte e a sobrevivência. Nesse esforço explicativo, surgem as que o filósofo denomina de visões objetivantes da morte, que a consideram como "um simples fato intramundano, como a corrupção de um corpo, ou o desmoronamento de uma estrutura biofísica, (e que) desprezando a relação pessoal interrompida, não respeitam a totalidade de sua natureza" [Silva, 1964: I, 25].

Reino dos vivos opõe-se radicalmente à morte. Aquele é constituído pela "assembléia daqueles que pela determinação do seu amor" geram sempre mundo ao seu redor. A morte constitui a interrupção dessa "comunidade de libido e de cuidado", mediante a destruição do vínculo exteriorizado dessa co-participação. A morte do próximo é, assim,  uma "infidelidade trágica" de sua parte, na expressão cunhada por Landsberg, que Ferreira da Silva faz sua. Existe uma dualidade trágica entre a morte e a vida, entre a nossa natureza (que implica movimento, atividade e superação) e o confinamento, o ensimesmamento definitivo dos mortos. Trata-se, considera Ferreira da Silva, de uma "luta entre a fidelidade ao passado e à pessoa do morto, e os novos anseios de vida". Assim, o acontecimento objetivo da morte e o fato subjetivo não se correspondem. Em decorrência da minha morte dilui-se a minha circunstância mundanal, devido ao desmoronamento da base da minha encarnação. Ferreira da Silva destaca o caráter misterioso da morte. Tal caráter deita raízes no fato de que ela nos liberta da esfera fenomênica, constituindo assim para nós um mistério que não pode ser analisado por nenhuma ciência. De acordo com esse caráter, a nossa atitude diante da morte deve ser de confiança no mistério. Eis a forma em que o pensador caracteriza essa atitude: "O que pode existir, sim, é uma confiança no mistério, um sentimento efusivo de que o inteligível não é tudo e que podemos abandonar-nos mesmo àquilo que não pode ser vertido nos diagramas do conhecimento. Esta confiança é contrária ao desafio do conhecimento, é o sentimento esperançoso e tranqüilo do que, como o núcleo do nosso ser, se opõe ao terror do aniquilamento" [Silva, 1964: I, 28].

Conclusão

Segundo salientou Benedito Nunes, a obra filosófica de Heidegger pode-se dividir em duas etapas: um primeiro ciclo que "é preenchido pela influência da Ontologia Fundamental, recebida como expressão de uma filosofia que centralizava as várias tendências existenciais até então dispersas, ratificando a transformação da metafísica numa antropologia filosófica, preconizada antes de Ser e Tempo por Max Scheler" [Nunes, 1980: 6]. Esse primeiro ciclo estaria representado pela obra que acaba de ser mencionada, devendo ser levado em consideração, contudo, o caráter não fechado da mesma, que é testemunhado pelo seu inacabamento.

Já o segundo ciclo da meditação heideggeriana começa com a rejeição, por parte do filósofo alemão, do paralelo que alguns críticos pretendiam estabelecer entre o seu pensamento e o existencialismo, particularmente a meditação sartreana. O início desta segunda etapa estaria marcado pela sua Carta sobre o Humanismo (escrita em 1949), endereçada a Jean Beaufret, e que foi provocada, em parte, pela conferência de Sartre intitulada L'existencialisme est un humanisme. Heidegger, porém, já tinha feito, anteriormente, algumas ressalvas quanto ao caráter não existencialista de sua meditação, no seu ensaio Filosofia da Existência [cf. Nunes, 1980: 6]. Benedito Nunes caracteriza, assim,  o cerne do pensamento heideggeriano nesta etapa: "Questão de fundo, interesse, encargo ou destino do pensamento  - seu assunto e seu tema únicos -  o Ser torna-se, como matéria exclusiva da indagação heideggeriana, menos um centro de especulação teórica do que o alvo de uma prática meditante, concernida com o objeto  de sua busca desde o plano da linguagem,  caminho preferencial, ao plano histórico, quer na época da cultura grega, em que despontou a metafísica, enquanto forma dominante de concepção do ocidente europeu, quanto na época atual, caracterizada pela expansão planetária da técnica, em que se prenuncia a superação da mesma metafísica" [Nunes, 1980: 7]. Nesta segunda etapa da obra heideggeriana dá-se uma inversão na sua temática, em que é privilegiada a posição do Ser como norte único de toda a meditação filosófica. O dizer poético será o veículo de comunicação da ec-sistência, devendo-se "pensar a essência da linguagem a partir da correspondência ao Ser" [Heidegger, 1979: 159], como foi destacado no início desta exposição. Assim, podemos caracterizar a obra filosófica de Martin Heidegger citando as palavras de Benedito Nunes, como sendo "uma investigação extremada que tenta falar daquilo mesmo que o discurso filosófico especulativo condenou ao esquecimento, o Ser, o tempo e a linguagem, e que por isso não se detém nos limites onde o pensamento deve silenciar. A prática meditante heideggeriana, já excedentária à filosofia e laborando na sua negação, alcança, enfim, pelo dizer poético que procura liberar na linguagem, a inversão do Ser e Tempo para Tempo e Ser, como virada do idioma metafísico. Expressão tateante e sondagem antecipadora de um pensamento por vir, a virada prenuncia a possibilidade de uma mudança profunda nas próprias relações do homem com o Ser e dos homens entre si. A revolução da linguagem,  consumada no dizer poético, tornar-se-ia, com a obra inteira do filósofo, o prólogo interrogativo e perplexo dessa mudança possível, entreaberta na cena revolta da nossa época, onde se joga, num lance decisivo, o destino do mundo e do homem postos em questão" [Nunes, 1980: 7].

Vale a pena salientar que na obra filosófica de Vicente Ferreira da Silva deu-se uma evolução semelhante à do filósofo alemão. Miguel Reale assinala três etapas na evolução do pensamento ferreiriano: a) de formalização lingüístico-matemática, b) etapa existencial e c) etapa de compreensão poético-religiosa da história e do cosmo. A primeira etapa manifestou-se no ensaio intitulado Elementos de Lógica Matemática, que o nosso autor escreveu em 1940. A etapa existencial caracteriza-se, no dizer de Reale, pelo "interesse compreensivo e desvelado amor pelo significado pleno da existência humana, do que é exemplo magnífico o seu belo livro Dialética das Consciências (1950), o mais perfeito ensaio em língua portuguesa sobre os problemas da intersubjetividade e da alienação, onde demonstra que a atuação do espírito se dá na forma do encontro e da comunicação existencial, remontando às fontes primordiais da sociabilidade como concreção e concreação" [Reale, 1964: I, 11]. A esta segunda etapa pertencem a maior parte dos trabalhos de Ferreira da Silva que foram objeto de análise nestas páginas, como O Andróptero (1948), Utopia e Liberdade (1948), Para uma moral lúdica (1949) e Meditação sobre a Morte (1948). Os estudiosos franceses Sylvie e Zdenek Kourim chegam a considerar esta etapa do pensamento ferreiriano tão importante, que no sentir deles o cerne deste seria o tema antropológico. A terceira etapa da evolução filosófica de Ferreira da Silva é, segundo Reale, a da compreensão poético-religiosa da história e do homem. A esta etapa, que se inicia em 1951, o nosso autor dedicou os últimos doze anos de sua vida, "ofertando-nos ensaios esparsos, como intuições poderosas, numa linguagem que se tornou cada vez mais apurada e pessoal, e às vezes enigmática, que lembra a do último Heidegger, mas que com ela não se confunde". Alguns dos trabalhos pertencentes a esta terceira etapa são, por exemplo, Filosofia da Mitologia e da Religião (1954), Sociologia e Humanismo (1958), O Homem e a Liberdade na Tradição Humanística (1961), O Ocaso do Pensamento Humanístico (1960) e Natureza e Cristianismo (1957). Porém, a mais importante obra deste período é, ao meu modo de ver, o ensaio Idéias para um Novo Conceito de Homem (1951) que inclui o escrito intitulado A concepção do Homem segundo Heidegger que comentei atrás e que constitui o ponto de partida para a última fase da meditação ferreiriana.

Assim como o segundo Heidegger não nega o primeiro, antes pelo contrário projeta uma luz esclarecedora sobre o autor de Ser e Tempo, da mesma forma encontramos um nexo estreito entre as diferentes etapas da meditação ferreiriana, especialmente entre as duas últimas. Segundo Reale, nos ensaios de Ferreira da Silva intitulados Idéias para um novo conceito do homem Teologia e Antihumanismo, este último de 1953, é onde o pensador paulista exprime de forma mais explícita o cerne da terceira etapa de sua meditação, que consiste em pensar "o homem e as coisas a partir de Deus, pondo-se o pensador ousadamente na perspectiva original do divino" [Reale, 1964: I, 12]. Em linguagem heideggeriana diríamos, melhor, que o pensador paulista se coloca, nesta segunda etapa, na perspectiva original da ec-sistência, para pensar o homem e as coisas a partir do Ser. Em relação ao estreito nexo que existe entre as etapas do pensamento ferreiriano, especialmente entre as duas últimas, a humanística e a ec-sistencial, Miguel Reale anota que com os ensaios Idéias para um novo conceito de homem e Teologia e Antinhumanismo, "Vicente supera, sem a eliminar, (...)  a dialética das consciências (...), para elevar-se às fontes projetantes e condicionadoras da intersubjetividade, concluindo que, na base da liberdade individual do eu e do tu, em seu jogo dialético condicionado, está o Ser como liberdade que funda e institui o espaço de manifestação do homem e de suas possibilidades históricas contingentes. O segundo Heidegger, cujas obras ninguém soube interpretar melhor que ele no Brasil, propicia-lhe o encontro de suas perspectivas originais, o que, diga-se uma vez por todas, para prevenir críticas superficiais, nunca o impediu de viver intensamente os problemas brasileiros, como o demonstrarão os seus penetrantes estudos sobre política, educação e sociologia" [Reale, 1964: I, 12].

Reale frisa que a meditação ferreiriana, em virtude do princípio herdado de Heidegger "de que o homem não é o senhor do Ente, mas o pastor do Ser", concebe a filosofia intramundana como momento da filosofia transmundana ou Filosofia da Religião e da Mitologia, ou melhor, da Filosofia da Religião como Mitologia, "à qual corresponde um novo humanismo, não apenas teocêntrico (referido a Deus) mas teogônico (como projeção do divino)" [Reale, 1964: I, 12]. Essa orientação anti-historicista (porquanto não limitada à dimensão intramundana) é o ponto de partida, na meditação de Vicente, para uma nova visão da história e da gênese do processo gnoseológico, que se alicerça na abertura ao Ser e não na manipulação dos Entes e que inspira a sua crítica ao Ocidente, num paradoxal esforço por salvá-lo de si mesmo" [Reale, 1964: I, 13].  A meditação ferreiriana apontaria, assim, em último termo, para o reconhecimento de uma historicidade transcendente que nos permita voltar às origens, no reconhecimento do Ser. Eis a forma em que Reale tipifica essa finalidade última da filosofia do nosso autor: "Sua preocupação pelas origens e o valor do infra-estrutural, quer na raiz da personalidade, como o demonstra o ensaio intitulado Uma interpretação do sensível, quer no evolver das idéias, como o revela a sua nota sobre Heráclito ou o estudo sobre a origem religiosa da cultura, tem, com efeito, o alcance de uma historicidade transcendente, de uma volta às origens, para dar começo a um diverso ciclo de história, diferente deste em que o homem estaria divorciado da natureza e das partes do divino; para um retorno, em suma, ao ponto original donde emergem todas as possibilidades naturais espontâneas, libertas das crostas opacas do experimentalismo tecnológico assim como das objectivações extrínsecas platônico-cristãs" [Reale, 1964: I, 13].

Em Ferreira da Silva encontramos, pois, um elo fundamental que unifica toda a sua meditação, ao longo das etapas assinaladas: a abertura para o Ser, o reconhecimento da essência do homem como ec-sistência (ek-sistência, diz o nosso autor), no melhor sentido heideggeriano. O homem é, para o filósofo alemão, e também para o pensador paulista, "o vizinho do Ser", ou, em palavras do próprio pensador paulista, citadas atrás, "o homem é o sujeito de um destino instituidor de sua própria realidade histórica, em relação ao qual pode se intimisar. O homem habita um domínio onde, o que está em jogo é algo que supera o homem, mas que o superando, lança-o numa situação histórica própria" [Silva, 1964: I, 259]. A idéia de ek-sistência, e não o conceito de símbolo (como pretendem Silvie e Zdenek Kourim), é a peça chave da filosofia ferreiriana. Essa perspectiva de abertura ao Ser, que funda a historicidade transcendente em que se desenvolve a meditação do nosso autor, é o elo que unifica os diferentes aspectos da reflexão sobre o homem, que foi estudada ao longo deste ensaio. Porque é ek-sistente, o homem está aberto à vivência do mundo eidético e é irredutível ao geograficamente dado. Porque é ek-sistente, o homem é irredutível às utopias, graças à fundação poética da sua essência. Porque é ek-sistente, é possível para o homem viver uma moral lúdica, na qual supere o mito do progresso indefinido. Porque é ek-sistente, a morte é para o homem um sucesso que transcende a pura fenomenalidade perceptiva e que enseja nele a confiança no mistério.

Bibliografia citada
  • HEIDEGGER, Martin [1979]. "Carta sobre o Humanismo". In: Martin Heidegger, Conferências e escritos filosóficos. (Tradução, introdução e notas de Ernildo Stein). São Paulo: Abril Cultural, pgs. 149-175, coleção "Os Pensadores".
  • HUSSERL, Edmund [1962]. Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie. Band VI, M. Nijhoff .
  • MARCUSE, Herbert [1970]. El hombre unidimensional. Barcelona: Seix Barral.
  • NUNES, Benedito [1980]. "Por que ler Heidegger hoje?". In: Suplemento Cultura - O Estado de São Paulo. Edição de 31 de agosto de 1980, vol. I, núm. 12, pg. 6.
  • PAIM, Antônio [1999]. "Silva, Vicente Ferreira da". In: Dicionário Bibliográfico de Autores Brasileiros - Filosofia, Pensamento Político, Sociologia, Antropologia. (Obra organizada pelo Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro). Salvador - Bahia: Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro; Brasília: Senado Federal. Pg. 453-455. Coleção "Biblioteca Básica Brasileira".
  • REALE, Miguel [1964]. "Prefácio". In: Vicente Ferreira da Silva, Obras completas. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, vol. I, pg. 7-14.
  • REALE, Miguel [1992]. "Silva (Vicente Ferreira da)". In: Lógos - Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Lisboa / São Paulo: Editorial Verbo,  vol. 4, pg. 1129-1132.
  • RODRÍGUEZ SÁNCHEZ, José Luis [1974]. "La fenomenología transcendental y la crisis de la ciencia y de la vida". In: Anuario Filosófico. Universidad de Navarra, vol. 7, pg. 311-368.
  • SILVA, Vicente Ferreira da [sem data]. Méditation sur la mort. (Apresentação, tradução e notas a cargo de Silvie e Zdenek Kourim). Université de Toulouse-le-Mirail.
  • SILVA, Vicente Ferreira da [1940]. Elementos de Lógica Matemática. São Paulo: Cruzeiro do Sul, 1940.
  • SILVA, Vicente Ferreira da [1964]. Obras completas. (Prefácio de Miguel Reale). São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, 2 volumes.
  • VÉLEZ RODRÍGUEZ, Ricardo [1981]. "O pensamento de Vicente Ferreira da Silva sobre o homem". In: Revista Brasileira de Filosofia. São Paulo, vol. 31, no. 123 (julho / setembro 1981): pg. 198-222.

[El presente trabajo fué preparado especialmente para el Proyecto Ensayo. La parte correspondiente al estudio de la meditación antropológica de Ferreira da Silva fué publicada inicialmente en la Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, vol. 31, no. 123, julio / septiembre de 1981, pgs. 198-222]. Junio 2003].

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

A FILOSOFIA NO MUNDO ATUAL (NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA)



Sob a coordenação da Professora Doutora Maria do Céu Patrão Neves, catedrática da Universidade dos Açores, em Ponta Delgada, acaba de ser publicado o livro intitulado Ética: dos fundamentos às práticas (Lisboa: Edições 70, 2016, 298 pgs.). 

A obra, iniciativa de grande valor patrocinada pela Presidência da República Portuguesa, integra uma série de livros dedicados ao estudo da Ética Aplicada. A coleção consta dos seguintes volumes, que abarcam os vários itens da ação humana considerados do ângulo dos valores morais: Ambiente, Animais, Comunicação Social, Economia, Educação, Investigação Científica, Novas Tecnologias, Política, Relações Internacionais,  Saúde e Serviço Social. 

A obra que ora apresento é integrada pelos seguintes capítulos: "Na senda da inquietude" (nota introdutória, a cargo da Profa. Maria do Céu Patrão Neves); "Um ponto de vista sobre a filosofia hoje" (António Manuel Martins, Universidade de Coimbra), "A filosofia no mundo atual" (Ricardo Vélez Rodríguez, Faculdade Arthur Thomas - Londrina e UFJF); "A teoria da ação" ( Isabel Renaud e Michel Renaud, Universidade Nova de Lisboa); "Racionalidade prática" (Carlos Morujãom Universidade Católica Portuguesa - Lisboa); "Conceitos que pensam a ação" (João Cardoso Rosas, Universidade do Minho); "Ingredientes da vida moral" (Manuel J. do Carmo Ferreira, Academia de Ciências de Lisboa); "A evolução histórica da Ética" (Michel Renaud, Universidade Nova de Lisboa); "La deliberación como método de la Ética" (Diego Gracia, Universidad Complutense de Madrid); "Éticas de principios e a abordagem particularista"(Pedro Galvão, Universidade de Lisboa); "Relativismo moral e universalismo ético" (Acilio da Silva Estanqueiro Rocha, Universidade do Minho); "Racionalidade hermenêutica e éticas aplicadas no mundo contemporâneo" (Maria Luísa Portocarrero, Universidade de Coimbra); "Ética e educação" (Maria Pereira Coutinho, Universidade Nova de Lisboa); "A ética no contexto das ciências humanas" (Cassiano Reimão, Universidade Nova de Lisboa); "A ética no contexto das ciências da Natureza" (Maria Manuel Araújo Jorge, Universidade do Porto); "Ética geral e éticas aplicadas" (José Henrique Silveira de Brito, Universidade Católica Portuguesa).

A seguir, transcrevo o capítulo de minha autoria, intitulado: "A Filosofia no Mundo Atual".

A criação filosófica, no Ocidente, deu-se em três planos: formulação de perspectivas, construção de sistemas e discussão de problemas. As três formas de criação do pensamento filosófico estão entrelaçadas. As perspectivas são como panos de fundo sobre os quais se desenvolve a atuação do conhecimento, enquanto que a construção de sistemas, que pressupõe esses panos de fundo, ocorre a partir da discussão de determinados problemas que capitalizaram a atenção dos homens em diferentes épocas da história, a partir da escolha de determinada Idéia matriz.

Os grandes sistemas filosóficos foram elaborados ao longo da Idade Média (nos séculos XII e XIII) e na Modernidade (nos séculos XVII, XVIII e XIX). No século XX, em decorrência da extraordinária explosão do pensamento científico (que fez com que, nos primeiros sessenta anos dessa centúria as descobertas científicas superassem em número as efetivadas ao longo dos dezenove séculos anteriores), a Filosofia passou a ser tematizada preferentemente como discussão de problemas. A dimensão problemática da Filosofia na contemporaneidade foi destacada notadamente por Nicolai Hartmann (1882-1950) na sua obra intitulada: Auto exposição sistemática, Rodolfo Mondolfo (1877-1976) em Problemas e métodos de investigação em história da filosofia e Miguel Reale (1910-2006) em Experiência e cultura.

Um panorama da Filosofia Contemporânea na América Latina deve, portanto, elencar os principais problemas debatidos ao longo dos séculos XX e XXI. Os três problemas fundamentais ao redor dos quais tem sido pensada a filosofia na América Latina no período em apreço são: I – a Totalidade, II – a Integração e III – a Libertação. Esses itens, curiosamente, acompanham a tríade de ideais que deram ensejo à Revolução Francesa: Igualdade (Totalidade), Fraternidade (Integração) e Liberdade (Libertação). Indicarei, a seguir, as principais manifestações dessa reflexão.

I – A problemática da Totalidade.

Três autores debruçaram-se hodiernamente sobre a problemática em apreço: Octavio Paz (1914-1998), Vicente Ferreira da Silva (1916-1963) e Roque Spencer Maciel de Barros (1927-1999).

Para Octavio Paz (Prêmio Nobel de Literatura, 1990), a totalidade ameríndia do México é sintetizada no sincretismo emergente dos mitos que inspiraram a cultura mexicana: o catolicismo peninsular e a religião ameríndia (Nueva España: orfandad y legitimidad, 1979). Esses mitos encontram a sua principal expressão, no século XVII, no duplo processo de identificação de Quetzatcóatl com o Apóstolo São Tomé e de Tontantzin com a Virgem de Guadalupe. O mito de Quetzatcóatl / São Tomé exprime a universalidade da Nova Espanha, a sua renovação perante a ordem antiga e a sua legitimidade. O mito de Tonantzin / Guadalupe conferiu ao povo mexicano a sua legitimidade primordial no seio da Mãe / Montanha. A respeito frisa: “O característico do caso mexicano não é que as supervivências pré-colombianas se apresentem mascaradas, mas que é impossível separar a máscara do rosto: fundiram-se. O homem hispano-americano não pode ser entendido sem referência a esse pano de fundo sincrético e totalizante”.

O filósofo brasileiro Vicente Ferreira da Silva (que se inspira em Heidegger, Schelling, Walter Otto, Karl Kerényi e Mircea Eliade), considera que no inconsciente dos povos preexiste uma realidade inaugural constituída pelo Fascinator e que se revela na Mitologia. A fundação da cultura é um acontecimento primordial, de caráter meta-histórico. A expressão mito-poética é, no seio das culturas, a melhor forma para apreender a sua alma. À luz dos mitos ameríndios seria possível resgatar a originalidade do filosofar latino-americano, preservando a ideia de cultura como totalidade e incorporando a mitologia judaico-cristã, à luz da qual se forma a ideia da história como progresso. (Este aspecto do pensamento de Ferreira da Silva tem sido destacado por dois estudiosos da sua obra: Adolpho Crippa e Constança Marcondes César). À luz das mitologias ibéricas e ameríndias seria possível, também, formular uma moral lúdica, contraposta às éticas utilitaristas de desencantamento do mundo.

O pensador brasileiro Roque Spencer Maciel de Barros entende que a realização humana, nos terrenos econômico, cultural e político, deve ser aprofundada do ângulo da natureza do homem. Porque nesta residem as possibilidades da liberdade e do totalitarismo (O fenômeno totalitário). Tal fenômeno tornou-se realidade institucional no século XX, em decorrência do avanço das ciências a serviço dos Estados. Mas as suas raízes aprofundam-se na tradição filosófica ocidental, desde Platão, passando por Rousseau e chegando até a contemporaneidade. O totalitarismo nega tanto a realização do indivíduo quanto da comunidade. A melhor forma de prevenir esse risco num determinado país consiste em conhecer o fenômeno totalitário na sua inteireza. Nas culturas ibero-americanas, herdeiras do absolutismo ibérico pós-feudal, há sementes de totalitarismo, na medida em que a questão da liberdade dos indivíduos e das comunidades muitas vezes é deixada em segundo plano, em aras de um populismo autoritário. Na tentativa em prol de constituir a comunidade, o homem latino-americano deve levar em consideração, especialmente, a questão da liberdade individual, sem a qual não haverá verdadeira comunidade. Isso deve ser levado em consideração no terreno educacional, a fim de que o sistema de ensino seja uma autêntica educação para a liberdade, não para a servidão.

II – A problemática da Integração.

Três autores privilegiaram, na sua reflexão, a temática da Integração: José Vasconcelos (1882-1959), Francisco Romero (1891-1962) e Otto Morales Benítez (1920-2015).

O filósofo mexicano José Vasconcelos, na sua obra Indología, considerava que a essência da realidade, a energia, só poderia ser apreendida mediante a intuição estética (primeira faculdade da alma), não pelo caminho da razão discursiva. Os povos europeus, caducos, afastaram-se, em decorrência do materialismo e do racionalismo, do caminho da intuição estética. Aos povos ibero-americanos herdeiros da “mestiçagem universal”, cabe a missão de apreender o cerne da realidade (a energia) e, a partir dela, regenerar as caducas sociedades ocidentais. A capital da cultura estaria situada na cidade de “Universópolis”, a ser construída na região amazônica. Esta cidade seria expressão do terceiro estado da Humanidade (o estético), que ensejaria a superação dos imperfeitos estados anteriores (o material ou guerreiro e o intelectual, ou político). A integração ibero-americana ocorreria por força do élan criador da raça integral ou raça cósmica, que teria como missão conduzir a Humanidade até a sua plenitude.

O pensador argentino Francisco Romero na sua obra: Sobre a filosofia na América, alicerçava a sua concepção da integração latino-americana numa filosofia de inspiração anti-positivista e espiritualista, polarizada ao redor de dois pontos: a axiologia e o personalismo. Para ele, o espírito reveste-se de um valor absoluto ao se tornar presente na pessoa. Romero considerava que a América Latina seria uma grande Nação, em cujo seio conviveriam, pacificamente, todos os povos latino-americanos. A possibilidade de que esse ideal se concretize depende do desenvolvimento da consciência acerca dos valores comuns, que fundamentam a cultura latino-americana. Essa consciência se desenvolve no seio da meditação filosófica. Em face dessa grandiosa perspectiva, os pensadores latino-americanos têm um dever moral: criar os elos de comunicação entre os diversos países, superando, no diálogo intelectual desinteressado e aberto, os tacanhos particularismos. Esse exemplo será a base cultural sobre o qual se formará a consciência comum, que será a base da integração econômica e política.

Para o pensador e ensaísta colombiano Otto Morales Benítez a integração latino-americana, que constituía o grande ideal de Bolívar, não é uma realidade simples. Esse ideal deve ser equacionado em vários frentes: o cultural, o político e o econômico. No entanto, a ação no terreno da cultura é a que deve abrir o caminho para as outras variáveis. O escritor colombiano desenvolve as suas teses a respeito dessa ação integradora no plano cultural, na sua obra intitulada:  América Latina: integração pela cultura. Dois aspectos são desenvolvidos por Morales Benítez nessa tarefa de integração ao redor da cultura: o ético-jurídico e o historiográfico. No terreno ético e jurídico da integração, as bases devem ser os imperativos categóricos da liberdade e da justiça social. A filosofia política liberal, na linha social de Tocqueville e Keynes, é o ponto de inspiração de Morales Benítez. No terreno estritamente jurídico, deve ser estruturado o direito agrário na América Latina, a fim de criar as instituições necessárias para o equacionamento do ideal da justiça social no campo (Direito Agrário e Liberalismo, destino de la Patria). No que tange à reflexão historiográfica sobre a integração, Morales Benítez considera que é importante pesquisar, na História latino-americana, a parte correspondente aos ideais integracionistas, desde os ancestrais aborígenes, passando por Bolívar e chegando até a contemporaneidade. Sem conhecermos os ideais e as lutas dos que pensaram essa realidade, a atual geração não poderá equacionar a contento o ideal da integração continental (Propuestas para examinar la historia con criterios indoamericanos).

III- A problemática da liberdade e da libertação.

Quatro autores se debruçaram sobre esta temática de ângulos diferentes: 1 – Do ângulo marxista: Camilo Torres Restrepo (1929-1966) e Enrique Dussel (1934). 2 - Do ângulo da filosofia política liberal-conservadora: José Osvaldo de Meira Penna (1917) e Enrique Krauze (1947).

A primeira versão precursora da Teologia da Libertação na América Latina foi obra do ex-sacerdote e guerrilheiro Camilo Torres Restrepo, formado na Universidade Católica de Louvain, que junto com a Escola de Frankfurt representou um dos dois polos escolhidos pela União Soviética para a divulgação do marxismo nos meios acadêmico e político na Europa, nos anos 60 do século passado. A respeito da sua opção revolucionária, Camilo, que foi capelão da Universidade Nacional da Colômbia, adotou uma posição semelhante à assumida, no início do século XX, pela doutrinária e ativista polonesa Rosa Luxemburgo na sua obra intitulada: O socialismo e as Igrejas: o Comunismo dos primeiros cristãos (1905). Efetivamente, Camilo Torres afirmava, juntando na mesma opção cristianismo, revolução e técnica, num clima de messianismo político que faz lembrar o messianismo político saint-simoniano, pensado em torno ao novo cristianismo: “Soy revolucionario como colombiano, como sociólogo, como cristiano y como sacerdote. Como colombiano, porque no puedo ser ajeno a las luchas del Pueblo. Como sociólogo, porque gracias al conocimiento científico que tengo de la realidad, he llegado al conocimiento de que las soluciones técnicas y eficaces no se logran sin una revolución. Como cristiano, porque la esencia del cristianismo es el amor al prójimo y solamente con la revolución puede lograrse el bien de la mayoría. Como sacerdote, porque la entrega al prójimo que exige la revolución es un requisito de caridad fraterna, indispensable para realizar el sacrifico de la misa, que no es una ofrenda individual, sino de todo el pueblo de Dios por intermedio de Cristo” (Mensaje a los Cristianos).

Para o filósofo e professor argentino Enrique Dussel (1934), que leciona na Universidade Autónoma do México a forma libertadora de refletir “(...) pretende formular uma metafísica exigida pela praxis revolucionária e pela poiesis tecnológica. Esta metafísica da libertação será formulada a partir da formação social periférica, que se estrutura em modos de produção completamente entrelaçados. É necessário, para isso, descrever o sentido da praxis da libertação, que somente é revelada pelo oprimido que luta para sair da opressão. Os críticos pós-hegelianos de esquerda europeus somente vislumbraram de forma parcial essa praxis libertadora” (Filosofia da Libertação).

Para o pensador e diplomata brasileiro José Osvaldo de Meira Penna, o tema da Libertação é central na filosofia ocidental, desde o Helenismo até os nossos dias. Ao ensejo da fecundação do Helenismo pela tradição judaico-cristã, esse tema ganhou a dimensão de uma filosofia da Pessoa Humana, pensada primeiro no contexto da metafísica cristã de Santo Agostinho e de S. Tomás de Aquino e, na modernidade, no seio de ontologias de inspiração personalista (Mounier, Maritain, Lavelle, etc.). A temática da Libertação, do ângulo do personalismo cristão, implica em levar em consideração três variáveis: responsabilidade individual, democracia e liberdade. A grande falha da Teologia da Libertação, na forma promulgada na América Latina à sombra do marxismo, no final do século XX, decorre do fato de que coloca a libertação num contexto puramente econômico e determinístico, sem levar em consideração a dinâmica espiritual da pessoa. Somente um liberalismo democrático, como o proposto por Tocqueville na sua Democracia na América, será capaz de reinterpretar, de um ângulo verdadeiramente humanista, os anseios de libertação e democracia que percorrem de norte a sul o Continente Latino-americano. Para divulgar essa proposta, Meira Penna fundou, em 1989, no Rio de Janeiro, com outros pensadores liberais e conservadores, a Sociedade Tocqueville. Em duas obras este pensador deixou sintetizada a sua proposta libertadora: Opção preferencial pela riqueza e O espírito das revoluções.

O pensador mexicano Enrique Krauze, herdeiro da tradição liberal contemporânea sedimentada no seu país por Daniel Cosío Villegas e Octavio Paz, realizou crítica análise do fenômeno da Teologia da Libertação, que encontrou a sua mais agressiva manifestação política no fenômeno do chavismo, na Venezuela. A respeito escreve, destacando o imprescindível papel dos historiadores no desmonte desse mito: “(...) Terrível e fascinante ao mesmo tempo. Chávez, pelo que noto,  procura apoderar-se da verdade histórica, e não só reescrevê-la, mas reencarná-la. Seu regime extrai sua legitimidade de uma interpretação mítica da história que fala através dele, que converge nele, que se encarna nele. Só os historiadores podem refutá-lo, só eles podem restaurar a verdade dos fatos e a historicidade dos processos, embora seus livros alcancem milhares, não milhões. Na Venezuela, a disputa do passado é a disputa do futuro” (O poder e o delírio, 2013).

BIBLIOGRAFIA

BARROS, Roque Spencer Maciel de. O fenômeno totalitário.

DUSSEL. Enrique. Filosofia da Libertação.

HARTMANN, Nicolai. Auto exposição sistemática.

KRAUZE, Enrique El poder y el delirio, 2013

LUXEMBURGO, Rosa. O socialismo e as Igrejas: o Comunismo dos primeiros cristãos (1905).

MONDOLFO, Rodolfo. Problemas e métodos de investigação em história da filosofia

MORALES BENÍTEZ, Otto.  América Latina: integração pela cultura

MORALES BENÍTEZ, Otto. Propuestas para examinar la historia con criterios indoamericanos.

PAZ, Octavio. Nueva España: orfandad y legitimidad, 1979.

PENNA, José Osvaldo de Meira. O espírito das revoluções.

PENNA, José Osvaldo de Meira. Opção preferencial pela riqueza

REALE, Miguel. Experiência e cultura.

ROMERO, Francisco. Sobre a filosofia na América.

TOCQUEVILLE, Alexis de. Democracia na América

TORRES, Camilo. Mensaje a los Cristianos.



VASCONCELOS, José. Indología