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sábado, 9 de dezembro de 2017

JOÃO CARLOS ESPADA - RECORDANDO FRANCISCO SUÁREZ (1548-1617)

O padre jesuíta Francisco Suárez (1548-1617), figura central da Segunda Escolástica ibérica.

Recordar Francisco Suárez consiste também em recordar que a civilização ocidental da liberdade sob a lei não começou com as ideologias revolucionárias do século XVIII.

Na passada quarta-feira, teve lugar no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica um Colóquio sobre o 4º centenário da morte de Francisco Suarez, promovido por Manuel Braga da Cruz e Pe. António Vaz Pinto, com o apoio da Companhia de Jesus e da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, terá lugar esta semana um Congresso sobre o mesmo tema.

O nome de Francisco Suarez poderá hoje ser pouco conhecido, ou mesmo desconhecido, entre nós (e seria talvez interessante refletir porquê). Mas a verdade é que se tratou de um dos mais célebres filósofos do seu tempo — e acontece que está sepultado na Igreja de S. Roque, no Largo da Misericórdia, em Lisboa (onde o Colóquio do IEP-UCP terminou com uma Missa celebrada por Pe. António Vaz Pinto).

Francisco Suarez fez parte da chamada Escola de Salamanca e ensinou também na Universidade de Coimbra. Nas convencionais histórias do pensamento político ocidental, é costume recordá-lo como um precursor das doutrinas do contrato social que seriam mais tarde desenvolvidas por Thomas Hobbes e John Locke, bem como por Jean-Jacques Rousseau.

Há certamente muito mérito em recordar Suarez no contexto das doutrinas do contrato social — isto é, no contexto das doutrinas que limitaram o ‘poder divino’ dos reis por recurso a alguma forma de consentimento dos governados (frequentemente chamados ‘Povo’ — uma expressão com alguma tonalidade coletivista e monista, que procuro evitar).

Um crucial mérito dessa recordação consiste em observar empiricamente que a moderna teoria da democracia não começou com a ruptura revolucionária do Iluminismo do século XVIII. Por outras palavras, um embrião da teoria do contrato social pode ser encontrado, para não ir mais atrás, na Escola de Salamanca e em Francisco Suarez — por sinal um Jesuíta, e por sinal um crítico veemente da Reforma protestante e do absolutismo regalista que, paradoxalmente, lhe esteve associado.

Esta recordação é em si mesma muito relevante. Contraria empiricamente a crença ingénua de que a democracia é produto de uma “revolução moderna contra o passado”. Mas há mais a dizer sobre este assunto.

Francisco Suarez e a Escola de Salamanca enraizavam a ideia de contrato social no Direito Natural — uma herança de Aristóteles e Tomás de Aquino. Este enraizamento está ausente em Hobbes, que concebeu um contrato social fundado apenas no “instinto de auto-preservação” — dando por isso lugar a um governo absoluto (ainda que limitado). E está completamente ausente em Rousseau — que concebeu a ideia peregrina (e, a meu ver, aterradora) de que o único critério de bem e mal reside na “vontade geral” de um coletivo de iguais. Ele chegou mesmo a sustentar que “o soberano [resultante da vontade geral], pelo mero facto de ser, é sempre tudo o que deve ser”.

Por outras palavras, o contrato social de Rousseau é fundamentalmente diferente do proto-contrato social de Suarez (bem como, em grande parte, de John Locke, que também preservou, à sua maneira, a ideia de Direito Natural). Rousseau “libertou” a vontade geral, alegadamente resultante do contrato social, de quaisquer limites ou escrúpulos morais decorrentes do Direito Natural. Escreveu Rousseau: “agora que o soberano é formado inteiramente pelos indivíduos que o compõem, o soberano não tem, nem poderia ter, qualquer interesse contrário ao deles; por isso, o soberano não precisa de dar quaisquer garantias aos súbditos”.

O resultado não se fez esperar. Os fanáticos da revolução francesa de 1789 levaram a cabo as piores perseguições ideológicas com base na “vontade geral” ou na “vontade do povo”. E os fanáticos da revolução comunista de 1917 na Rússia — que se apresentaram como herdeiros e continuadores da revolução francesa de 1789 — fizeram o mesmo em escala ainda mais aterradora.

Convém acrescentar que também o nacional-socialismo alemão só pôde fazer o que fez porque também ele se libertou de todos os limites e escrúpulos morais — porque também ele se libertou dos limites sugeridos pelo Direito Natural. Neste caso, a audácia “libertadora” foi culturalmente possível em grande parte devido ao niilismo revolucionário de Nietzsche. Ele gabou-se de ter tido a coragem do “olhar da águia sobre o abismo”, isto é, um olhar “para além do bem e do mal”. Esta coragem, segundo Nietzsche, apenas seria acessível aos “homens superiores”. (Pode talvez ser recordado que, pelo menos no caso pessoal de Nietzsche, para não ir mais longe, aquela “coragem” não teve resultados empíricos particularmente encorajadores).

Curiosamente, foram as revoluções inglesa de 1688 e americana de 1776 que recusaram romper com a tradição pré-moderna do Direito Natural. A inglesa disse que estava apenas a restaurar as liberdades da (Cristã) Magna Carta de 1215 — que limitava o poder do Rei “sob Deus e a Lei”. A americana justificou-se com base no “direito inalienável à vida, liberdade e busca da felicidade” com que todos os homens tinham sido “igualmente dotados pelo seu Criador”. Por outras palavras, como observou Edmund Burke, as “revoluções” que [hoje sabemos que] deram origem aos mais duradouros regimes pluralistas modernos orgulhosamente anunciaram que tinham raízes pré-modernas.


Para resumir uma longa história, recordar Francisco Suarez consiste também em recordar que a civilização ocidental da liberdade sob a lei não começou com as ideologias revolucionárias do século XVIII. A liberdade ocidental assenta numa longa conversação a várias vozes, cujas raízes remontam a Atenas, Roma e Jerusalém. Ignorar esta velha conversação produz consequências. Entre elas incluíram-se os modernos totalitarismos do século XX. Muito provavelmente, encontram-se hoje também as pós-modernas visões niilistas e grosseiras de um mundo sem maneiras e sem fronteiras morais.

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O prof. Dr. João Carlos Espada é diretor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa.

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